Pergunta: Poderá a Rússia beneficiar de alguma forma com o abate de um avião de passageiros?
A.U.: O mais provável é que tenha sido um acidente, uma vez que se tratava de um avião de passageiros de um país terceiro, o Azerbaijão, que não tem qualquer relação direta com a guerra russo-ucraniana. O incidente ocorre provavelmente numa altura inconveniente para o Kremlin, uma vez que as relações entre a Rússia e o Azerbaijão melhoraram nos últimos anos. O ataque ao avião azerbaijanês e, em particular, a recusa irresponsável de permitir que o avião danificado efectuasse uma aterragem de emergência no interior da Rússia poderá agora pôr em causa essas relações.
P: Em que é que este incidente se assemelha ao abate do MH17 em 2014?
A.U.: Existem muitas diferenças à superfície, mas também algumas semelhanças estruturais e contextuais. Há três que se destacam: Em primeiro lugar, à semelhança da catástrofe de 2014 sobre o leste da Ucrânia, parece que foi utilizado um míssil antiaéreo pesado e de grande altitude numa área onde voam aviões de passageiros. Já em 2014 tinha sido surpreendente que o exército russo estivesse disposto a correr o risco de matar em massa civis não envolvidos para atingir os seus objectivos militares na Ucrânia. Agora, a crueldade do Kremlin foi ilustrada mais uma vez. Em segundo lugar, para além desta negligência geral, destaca-se mais uma vez a irresponsabilidade para com os cidadãos não russos e as companhias aéreas, que – tal como em 2014 a Malyasian Airlines e os seus passageiros – têm de suportar os danos colaterais da guerra implacável da Rússia. Em 2024, a recusa russa de permitir uma aterragem de emergência para a aeronave estrangeira danificada torna esta imprudência ainda mais evidente. Em terceiro lugar, as desculpas do Kremlin em 2024 são tão absurdas como eram em 2014. Se, há 10 anos, os ucranianos foram responsabilizados pelo abate de um avião que voava a grande altitude sobre uma parte da bacia do Donets controlada de facto pela Rússia, em 2024, diz-se que o acidente foi causado por uma “colisão com aves” – e, portanto, pela própria companhia aérea azerbaijanesa. Atualmente, é quase surpreendente que a Ucrânia ainda não tenha sido responsabilizada pelo abate do avião sobre a Rússia.
P: Qual o impacto do abate do avião nas relações entre a Rússia e o Azerbaijão?
A.U.: Nos últimos quatro anos, a Rússia traiu mais ou menos o seu aliado oficial no Sul do Cáucaso: a Arménia. Moscovo deixou Yerevan de lado durante a escalada do conflito entre a Arménia e o Azerbaijão sobre o território disputado de Nagorno-Karabakh e, em vez disso, aprofundou a sua relação com Baku. Em alguns aspectos, a ditadura hereditária da família Aliyev no Azerbaijão assemelha-se ao regime sírio derrubado de Hafiz e Bashar al-Assad. Com sistemas de governo tão autocráticos, é difícil prever até que ponto este bombardeamento e a surpreendente recusa de uma aterragem de emergência irão desgastar as relações entre Moscovo e Baku.
P: Que consequências ou reacções poderão surgir agora?
A.U.: É provável que o incidente tenha apenas algumas repercussões no tráfego aéreo para e dentro da Rússia, mas sem grandes consequências políticas. Espera-se apenas que o comportamento chocante da Rússia em relação ao avião de passageiros azerbaijanês em 2024 ajude a ilustrar, para as pessoas em todo o mundo, o modus operandi da guerra russa. Em 2014, Moscovo conseguiu lançar dúvidas sobre a sua responsabilidade no abate do voo MH17. Até hoje, muitos ainda não sabem ao certo quem foi o verdadeiro culpado na altura. A guerra psicológica da Rússia em relação ao MH17 estendeu-se até ao tribunal holandês competente, que curiosamente considerou que alguns guerrilheiros anti-ucranianos na bacia do Donets, e não o exército russo e o seu comandante-chefe Vladimir Putin, eram responsáveis pela utilização da unidade BUK-TELAR altamente sofisticada e dispendiosa que abateu o MH17. Atualmente, ainda é necessário muito trabalho jornalístico, jurídico e científico para se chegar a um acordo sobre o trágico e politicamente significativo incidente MH17 de 2014.