“Vindo ele da Polónia, portanto dos países de Leste, a questão que estava em cima da mesa nos países de Leste, com o marxismo, era que o trabalho era um elemento fulcral da transformação da sociedade”, recorda ao Observador o padre Peter Stilwell, responsável pelo departamento de relações ecuménicas e diálogo inter-religioso do Patriarcado de Lisboa e coordenador da edição em português de muitos dos mais importantes textos de João Paulo II sobre a doutrina social da Igreja. “A leitura do trabalho que se fazia era a leitura marxista. Portanto, o trabalho como alienação, na medida em que a pessoa trabalhava por intenção do patrão, sem liberdade pessoal, para obter dinheiro para sustentar a sua família.”
Em sentido oposto, João Paulo II introduziu “outra ideia”, a de que “em todo o trabalho há o investimento da inteligência e do talento do trabalhador”, pelo que os capitalistas “devem respeitar que o dinheiro que eles têm é trabalho e talento investido por quem trabalhou”. Por isso mesmo, o Papa criticava tanto o marxismo como o liberalismo. Considerava que “padecem ambos do mesmo erro”.
No início da década de 1980, João Paulo II chegou mesmo a escrever uma encíclica sobre o assunto — a Laborem Exercens —, que chocou especialmente Juan Fernández Krohn. Para ele, era inaceitável um Papa falar assim daqueles temas marxistas.
No seminário de Lefebvre, Krohn radicalizou-se contra o Papa. Ordenado padre no mesmo ano em que João Paulo II foi eleito Papa, em pouco tempo deixou de reconhecer sequer o polaco como um Papa legítimo.
Marcado pela solidão e pelo abandono durante a juventude, Krohn era um padre radical e isolado. Que rapidamente começou a ver em João Paulo II, não um Papa, mas um Antipapa, uma encarnação do Anticristo, um impostor a ocupar indevidamente a cátedra de São Pedro enquanto promovia uma infiltração do marxismo na Igreja Católica.
Na cabeça de Krohn, era precisamente por isso que João Paulo II continuava a manter fechado nos cofres do Vaticano o terceiro segredo de Fátima. Tinha a certeza de que aquele documento era a condenação, por parte da Virgem Maria, da reforma modernista em curso na Igreja que, acreditava, só podia conduzir à destruição de dois mil anos de tradição. E foi por isso mesmo que se decidiu a assassiná-lo: era preciso travar aquele Papa impostor.
No dia 12 de maio de 1982, João Paulo II está em Fátima para agradecer aquela que considera uma intervenção miraculosa da Virgem Maria para lhe salvar a vida depois do atentado do ano anterior.
No mesmo dia, chega a Portugal o padre Juan Fernández Krohn. Nesta altura, já está decidido a matar João Paulo II. Está há seis meses a desenhar o plano e não quer falhar na missão que Ali Agca não foi capaz de concretizar.
É um radical, mas nunca foi especialmente violento nem se envolveu em confrontos físicos: considera, no entanto, que está a agir corretamente. Acredita que é um instrumento ao serviço de Deus e que as suas ações são legítimas por serem em defesa da Igreja Católica e contra um impostor. Sabe, ainda assim, que as autoridades civis não vão pensar da mesma forma: e, por isso, está disposto a ser um mártir em nome da salvação da Igreja.
Preparou o plano ao detalhe, do sabre para evocar a lança do soldado que feriu Jesus Cristo na cruz às mensagens apocalípticas escritas a marcador azul e dirigidas a João Paulo II.
Mas o Papa tinha sido alvo de um atentado no ano anterior. A polícia estava alerta. Havia um forte dispositivo de segurança montado para a visita de João Paulo II a Portugal, que envolvia a divisão de segurança pessoal da PSP, os serviços de informações, a guarda suíça e a polícia do Vaticano e também os operacionais do próprio Santuário de Fátima.
Há uma personagem central nesta história: Manuel Cardoso Ramalhete, agente da PSP e um homem que esteve presente em vários momentos da História de Portugal no século XX.
Em novembro de 1975, foi um dos polícias que ficaram dentro do Palácio de São Bento durante 36 horas por causa do cerco ao Parlamento, um dos momentos mais tensos do PREC, o Processo Revolucionário em Curso. Depois, foi chefe de segurança do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro — e foi ele quem o levou ao aeroporto a 4 de dezembro de 1980, o dia em que morreu no desastre de Camarate.
Em maio de 1982, Manuel Cardoso Ramalhete era o chefe da equipa de segurança pessoal encarregue de proteger o Papa durante a passagem de João Paulo II por Fátima e por Coimbra.
Em entrevista ao Observador, recorda o momento em que viu Krohn, com uma “expressão agressiva e nervosa”, saltar as baias de segurança e a correr para o Papa — com a desculpa de que o queria beijar. E conta também como conseguiu travar aquele padre espanhol que queria assassinar João Paulo II.
Ao longo dos meses que se seguiram, Portugal acompanhou ao detalhe a investigação e o julgamento de Krohn. Os olhos do mundo estavam postos na justiça portuguesa. Pela primeira vez, os tribunais nacionais tinham em mãos um caso de grande relevância mundial: uma tentativa de homicídio contra o Papa.
“Eu e os meus colegas tínhamos a noção de que este julgamento foi o primeiro julgamento com uma repercussão internacional muito grande”, diz ao Observador o juiz jubilado José Santos Cabral, um dos três magistrados que formaram o coletivo que julgou o padre Krohn. “Era uma responsabilidade acrescida que nós tínhamos, não só perante a própria ideia de aplicação da justiça, como perante os nossos concidadãos e perante o mundo.”
O julgamento foi complexo. Foi preciso perceber se Krohn era imputável criminalmente ou se era um louco. E foi preciso perceber exatamente que motivações tinha para fazer o que fez. Durante vários meses, os juízes mergulharam na complexa e, por vezes, contraditória argumentação teológica apresentada pelo padre espanhol para justificar a necessidade imperiosa de assassinar João Paulo II.
Hoje, mais de 40 anos depois de tentar matar o Papa em Fátima, Juan Fernández Krohn vive em Bruxelas. Numa longa entrevista ao Observador, num hotel no centro da capital belga, conta a história do antes e do depois do gesto que definiu a sua vida.
“Matar o Papa”, o mais recente Podcast Plus do Observador, revela toda a história deste padre espanhol que se radicalizou ao ponto de conceber um plano para assassinar o Papa em Portugal. E não só: esta é também uma história sobre João Paulo II, o mistério de Fátima, as tensões da Guerra Fria e a crescente divisão interna da Igreja Católica — uma história que se passa nos anos 80 mas que atravessa todo o século XX.
“Matar o Papa” é uma série com seis episódios para ouvir no site e nas redes sociais do Observador, na Rádio Observador e também nas habituais plataformas de podcast e no Youtube.
Todas as terças-feiras é disponibilizado um novo episódio. As entrevistas e o guião são de João Francisco Gomes. A sonorização e a pós-produção áudio são de Bernardo Almeida. A narração é de Pedro Laginha e a música original de Rodrigo Leão.
Já pode ouvir o trailer e o primeiro episódio.
Estreia. “Matar o Papa”. Episódio 1: “O Anticristo em Fátima”
Trailer “Matar o Papa”. Estreia a 13 de maio
Todos os episódios estão já disponíveis, pela primeira vez, para os assinantes do Observador.