Desta vez, o Cónego Jeremias estava especialmente contente, graças à reabertura da catedral de Notre Dame, em Paris. Mal me viu, disse logo:
– Foi um excelente presente de Natal antecipado! É um magnífico monumento, mas, sobretudo, é um exemplo de como a religião cristã e a Igreja católica não apenas promovem o desenvolvimento intelectual e moral, como também a cultura e a arte.
– Não faltaram vozes a favor de uma Notre Dame laica …
– A França é a filha primogénita da Igreja católica, mas também é a pátria do laicismo jacobino. Por isso, houve quem quisesse espoliar a Igreja francesa desta catedral, convertendo-a num espaço inter-religioso ou, pior ainda, num museu ou centro cultural alheio ao propósito que presidiu à sua construção e uso sagrado.
– Como reagiu a diocese de Paris a esta ameaça?
– Com muita firmeza, sem nunca abrir mão da que é, afinal, a jóia da coroa da Igreja francesa. Quando ainda decorriam as obras de restauro, o Arcebispo de Paris fez questão de presidir a uma celebração religiosa no seu interior, para que ficasse claro que aquele edifício é uma catedral católica e, como tal, se deve manter. Como as obras ainda estavam em curso, o arcebispo teve de trocar a tradicional mitra por um capacete de operário da construção civil, o que deu um ar bastante pitoresco à liturgia!
– Também houve alguma polémica em relação ao modelo a observar na reconstrução, segundo tenho entendido.
– A Notre Dame, como qualquer outro templo onde há culto, não é uma igreja morta, como o panteão de Santa Engrácia, mas uma igreja viva. Por isso, houve quem quisesse reconstruir a Notre Dame no seu estilo original e primitivo. No entanto, prevaleceu o entendimento de manter a catedral parisiense tal como era na altura do incêndio, sem introduzir alterações.
– Não faltaram críticas ao montante gasto nestas obras …
– É uma crítica recorrente e, se quer que lhe diga, muito mesquinha. Também houve quem atacasse as Jornadas Mundiais da Juventude, esgrimindo esse falso argumento, quando hoje está provado que esse acontecimento eclesial não só trouxe a Lisboa uma multidão de mais de um milhão de peregrinos, muitos deles estrangeiros, como também teve um saldo e um retorno financeiro muito positivo. Além disso, ajudou à requalificação daquela área, que ficou apta para encontros multitudinários.
– Mas, tendo o Papa Francisco enunciado, como um dos princípios do seu pontificado, uma Igreja pobre e para os pobres, não teria sido mais evangélico dedicar aos mais desfavorecidos os milhões gastos na reconstrução da Notre Dame?
– Essa objecção tem barbas, porque foi isso que Judas Iscariotes disse quando Maria, irmã de Lázaro, derramou sobre Jesus um perfume avaliado em “trezentos dinheiros”, ou seja, o equivalente ao ordenado de um trabalhador durante um ano inteiro, “não porque se importasse com os pobres, mas porque era ladrão” (Jo 12, 5-6)!
– Certamente, mas a quem beneficiou o restauro da Notre Dame?
– A todos! Também os mais pobres e desfavorecidos foram beneficiados com a reconstrução da catedral de Paris, ou pensa que a arte e a beleza são só para os ricos?! Não há pior preconceito do que o de quem acha que basta ajudar economicamente os pobres, como se fossem seres inferiores que não carecem dos bens espirituais e culturais, que seriam uma prerrogativa exclusiva dos abastados. A Igreja é a casa comum dos cristãos, dos pobres e necessitados.
Há já uns anos vi, numa igreja em Bruxelas, em pleno inverno, vários sem-abrigo que se aqueciam naquele espaço, quando no exterior a temperatura era muito baixa. A minha primeira reacção foi de estranheza, mas depois fiquei gratamente surpreendido, porque aquelas pessoas, que se calhar não eram cristãs, nem religiosas, não seriam aceites em nenhum hotel, restaurante, ou loja, mas na Igreja, que é a casa de Deus, eram acolhidas e respeitadas.
– Em Portugal isso seria impensável …
– Talvez, mas também há casos semelhantes. Se reparar, os pobres geralmente não mendigam à porta dos bancos, que é onde está o dinheiro, nem dos partidos políticos, que tanto falam neles, mas das igrejas. Até disputam esses lugares, pois são os melhores para receber esmolas, porque os fiéis católicos, não sendo mais ricos, são os mais caridosos, porque o amor a Deus exige amar o próximo.
– Está bem visto!
– Claro! São pobres, mas não são estúpidos e, talvez, até sejam santos. Como os ricos, que não por isso são mais virtuosos, embora seja de justiça a abundância dos seus bens, se for a justa recompensa pelo seu mérito e trabalho.
– Suponho que os padres, identificados como tais, atraem os mendigos …
– Pode crer, o que é uma bênção de Deus. Magoa-me ver que há quem não lhes responda, nem sequer se digne olhá-los! Nunca os evito e procuro dirigir-lhes o olhar e uma palavra amiga, rezar uma oração por eles e dar-lhes a bênção. Quando posso, também lhes dou uma ajuda material, de preferência algum alimento. Mas é mais o que deles recebo do que lhes dou …
– Como assim?! Quer explicar isso?
– Conto um caso que me aconteceu e que muito me marcou: depois de ter gasto no parquímetro as últimas moedas, um sem abrigo pediu-me dinheiro. Disse-lhe que já não tinha, mas que, depois, lhe daria alguma coisa. Quando voltei ao estacionamento, talvez uma hora mais tarde, ele veio ter comigo, mas com outro pedido: queria que celebrasse uma Missa pelos seus pais, já falecidos, mas não podia dar a esmola que, nestes casos, se costuma oferecer. Escusado será dizer que logo me comprometi a fazê-lo, impressionado pela piedade daquele homem que, apesar de viver na miséria, estava preocupado com o bem espiritual dos seus pais! Que grande lição! Foi dos melhores presentes de Natal que alguma vez recebi!