Foi com surpresa que encontrei o Cónego Jeremias embrenhado na leitura de A representação do último duque de Aveiro, recentemente editado pela Principia.
– Então, Senhor Cónego, posso saber o que está a ler?
– Pois olhe, meu amigo, é um estudo histórico-jurídico sobre a representação do último duque de Aveiro.
– E pode-se saber quem era o dito duque de Aveiro?
– Então não sabe que D. José Mascarenhas, 8.º duque de Aveiro, foi o principal supliciado no chamado processo dos Távoras, há já 265 anos?! Na altura, era o mais importante fidalgo português, quase a par do duque de Bragança que, em 1640, passou a ser o Rei D. João IV. Ambos descendiam, por linha masculina, de dois reis portugueses: de D. João I procedem os duques de Bragança e, de D. João II, os duques de Aveiro.
– E quem foi o filho de D. João II de quem procedem os duques de Aveiro?
– D. Jorge, que lhe podia ter sucedido no trono, pois também D. João I era ilegítimo e, não obstante, foi rei. Foi este monarca que casou com a princesa inglesa D. Filipa de Lencastre, filha do duque de Lancaster. Foram os pais da ínclita geração, talvez a mais brilhante de toda a História de Portugal.
– Quem sucedeu, então, a D. João II?
– O seu cunhado e primo, D. Manuel I, irmão da Rainha D. Leonor, viúva de D. João II, que, por isso, se opôs a que D. Jorge sucedesse ao pai no trono.
– Que foi feito, então, do D. Jorge?
– Foi feito duque de Coimbra e o seu filho primogénito foi o primeiro duque de Aveiro. Como os reis não têm apelidos, D. Jorge também não tinha e, por essa razão, adoptou, para os seus filhos, o Lencastre da sua trisavó, a Rainha D. Filipa.
– Então, todos os Lencastres descendem dos duques de Aveiro?
– Nem todos, porque o título ducal só foi dado ao filho primogénito de D. Jorge e transmitido à sua geração, enquanto o apelido Lencastre é comum a toda a descendência de D. Jorge, duque de Coimbra.
– Mas o último duque de Aveiro, D. José Mascarenhas, já não era Lencastre …
– Também era, pois chamava-se D. José Mascarenhas da Silva e Lencastre. Há mais Lencastres que já o não são por varonia, mas mantêm o apelido.
– Com a morte do supliciado em Belém, quem sucedeu no ducado de Aveiro?
– Ninguém, porque só teve um filho, D. Martinho Mascarenhas, o marquezito de Gouveia, que morreu sem deixar geração legítima. Mas como tinha uma irmã, é na sua descendência que está hoje a sua representação, ou seja, quem deveria ser o actual duque de Aveiro.
– Mas, sendo Portugal uma república, ainda há títulos nobiliárquicos?
– Sim, porque em 1910 a república não aboliu os títulos de nobreza, que são parte do nosso património cultural e, como os apelidos, objecto de direitos de personalidade, que podem e devem ser tutelados pelo Estado. Curiosamente, o Japão é uma monarquia, na qual os títulos de nobreza foram extintos, e a Alemanha é uma república, na qual os títulos nobiliárquicos são reconhecidos oficialmente. Não é, portanto, uma questão política, nem de regime, mas cultural e social.
– Há casos análogos?
– Sim, porque Portugal já não é um país confessional, nem laico, denominação que não consta na Constituição, mas tem a obrigação de respeitar a liberdade religiosa de todos os cidadãos, qualquer que seja a sua crença. Se assim não fosse, o nosso país seria um Estado totalitário, onde não haveria liberdade religiosa.
– Faz sentido manter hoje, na Igreja, essas antigas tradições históricas?
– A Igreja é, por instituição divina, hierárquica e uma das fontes da divina revelação é, precisamente, a par da Bíblia, a sagrada tradição. Também na antiga União Soviética havia classes sociais e hierarquia: a tristemente famosa ‘nomenclatura’. Lembre-se de O triunfo dos porcos, de George Orwell, que é uma sátira à pretensa igualdade da sociedade comunista.
– Títulos de nobreza e santidade cristã são compatíveis?!
– Claro, até porque a Bíblia expõe a genealogia de Cristo, onde se afirma que Jesus era de família real, por descender do Rei David. Sua mãe, Maria, foi declarada, por D. João IV, Rainha de Portugal! Três filhas de D. Sancho I foram beatificadas: as Beatas Teresa, Sancha e Mafalda. Também não podemos esquecer a Rainha Santa Isabel, tão venerada em Coimbra, nem a Santa Joana princesa, padroeira de Aveiro, que era irmã de D. João II e tia de D. Jorge, duque de Coimbra.
– Que relação há entre a hierarquia eclesiástica e a civil?
– Em princípio respeitam-se – a Igreja reconhece a hierarquia do Estado e vice-versa – mas não se confundem. Há excepções: o Cardeal D. Henrique, apesar de clérigo, foi Rei de Portugal; e o 5.º duque de Aveiro era arcebispo.
– Mas, essa confusão entre o temporal e o espiritual não é saudável…
– É verdade que o Evangelho estabelece o princípio da separação entre o trono e o altar – “dai, pois, a César, o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21) –, mas os Papas, e também Francisco, enquanto chefes de Estado do Vaticano, são, na realidade, monarcas. E os bispos portugueses continuam a usar o Dom, que também se usa em Espanha e Itália – quem não se lembra do simpático Don Camilo?! –, e que é um tratamento nobiliárquico. A Igreja não desdenha a tradição, mas não é monárquica, nem republicana, embora haja quem diga que Satanás é republicano … porque foi o primeiro que se opôs ao reino dos céus!