Hélder Rosalino desistiu da nomeação para a liderança da (nova) Secretaria-geral do Governo, onde iria voltar a receber os mesmos 15.905 euros por mês que ganhava quando era administrador do Banco de Portugal – um cargo que abandonou em setembro (passando, depois, a receber um salário inferior como “consultor da administração”). Mas, culpando Mário Centeno por ter criado uma “complexidade indesejável”, o Governo diz que Rosalino acabou por recuar e vai, assim, continuar como consultor da administração do Banco de Portugal, instituição com a qual tem contrato.
O Governo confirmou, em comunicado emitido ao final do dia desta segunda-feira, que Rosalino já não irá assumir o cargo para o qual foi escolhido na última semana. “A solução encontrada permitia que o dr. Hélder Rosalino mantivesse o vencimento auferido há vários anos no Banco de Portugal, o qual foi por este definido” e, acrescentava o comunicado, “permitiria ao Estado português, no seu conjunto, a poupança de um segundo salário”.
Essa “solução encontrada” passava, confirmou o Governo oficialmente pela primeira vez, por ter o Banco de Portugal a “continuar a pagar o salário de origem”. Mas gerou-se uma “complexidade indesejável” que veio “impedir” o que o Governo insiste que seria uma “poupança de recursos públicos”.
Hélder Rosalino desiste de ser secretário-geral do Governo. Montenegro culpa Centeno
A polémica instalou-se depois de uma notícia do Correio da Manhã onde se dizia que Rosalino ia ganhar mais de 15 mil euros por mês no Governo. E acrescentava-se que, “num primeiro contacto”, o próprio Centeno tinha admitido que o Banco de Portugal poderia continuar a pagar o salário de Rosalino nas novas funções que iria assumir a 1 de janeiro de 2025.
Contactada pelo Observador, fonte oficial do Banco de Portugal recusou fazer mais esclarecimentos além dos que foram feitos no último sábado, em que garantiu que não poderia assumir quaisquer custos com o salário do secretário-geral do Governo, por estar proibido pelas regras do Eurosistema.
Frisava-se, aliás, que “esta informação foi transmitida pelo governador do Banco de Portugal ao Governo, quando contactado informalmente sobre este tema”. Esse foi um contacto, designado “informal” pelo comunicado do supervisor, que segundo apurou o Observador aconteceu só nos últimos dias, muito perto da publicação (na quinta-feira) do decreto-lei com alterações à legislação original (de julho) que criava a nova Secretaria-geral do Governo.
O que está escrito na Lei Orgânica do Banco de Portugal (artigo 18.º da secção VI, que rege as relações entre o Estado e o Banco) é que “é vedado ao Banco conceder descobertos ou qualquer outra forma de crédito ao Estado e serviços ou organismos dele dependentes”. E acrescenta-se que “fica igualmente vedado ao Banco garantir quaisquer obrigações do Estado” – onde se enquadraria o pagamento de um salário de alguém com um cargo político (como um secretário-geral do Governo).
Artigo 123º do Tratado Europeu proíbe financiamento monetário
↓ Mostrar
↑ Esconder
↓ Mostrar
↑ Esconder
A nível europeu, o fundamento desta proibição vertida na Lei Orgânica do Banco de Portugal está no artigo 123.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Este artigo estabelece que “é proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais dos Estados-Membros (…) em benefício de instituições, órgãos ou organismos da União, governos centrais, autoridades regionais, locais, ou outras autoridades públicas, outros organismos do setor público ou empresas públicas dos Estados-Membros, bem como a compra direta de títulos de dívida a essas entidades, pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais”.
Apesar deste constrangimento formal, é relativamente frequente o Banco de Portugal prescindir de quadros que vão, por alguns anos, trabalhar para outros reguladores ou para órgãos do Governo. Até o próprio governador (atual), Mário Centeno, esteve nessa situação quando foi ministro das Finanças. O que acontece em alguns desses casos, ao que apurou o Observador, é que por uma questão de facilidade burocrática o pagamento do salário e das contribuições para o fundo de pensões (entre outras) continuam a ser feitas pelo Banco de Portugal.
Porém, a cada pagamento que o Banco de Portugal faz (à pessoa ou ao fundo de pensões) há um “acerto de contas”, ou seja, é feito um reembolso por parte da entidade ao serviço da qual aquela pessoa está. Dessa forma, designadamente nos casos em que as pessoas vão trabalhar para outros órgãos do Estado, esse reembolso posterior serve para neutralizar os riscos de se incorrer numa violação das regras do financiamento monetário (as tais regras, referidas pelo Banco de Portugal, que impedem que se use o banco central para pagar despesas que deveriam ser do Orçamento do Estado).
O Governo não confirma, no comunicado, se a tal “solução encontrada” passava por ser o Banco de Portugal a pagar o salário ou se estaria em cima da mesa, uma vez mais, o mecanismo habitual em que a entidade que contrata o quadro, depois, reembolsa o Banco de Portugal. A julgar pelo teor do comunicado de Centeno, no sábado, estava em causa o pagamento pelo Banco de Portugal, sem reembolso – e o sublinhar, por parte do Governo, de que iria haver uma poupança salarial também vai no mesmo sentido.
O ano que iria contar para o cálculo do seu vencimento seria 2023, em que recebeu um rendimento superior a 215 mil euros. Ou seja, Rosalino sairia beneficiado pelos termos em que foi escrito o diploma publicado horas antes da Rosalino – um “delfim” de Vítor Gaspar – ser escolhido para se tornar uma espécie chief operating officer (COO) no executivo de Luís Montenegro.
No caso de Hélder Rosalino, depois de anunciar a saída da administração do Banco de Portugal na data em que terminou o seu mandato (e nem mais um dia), o gestor assumiu o lugar de “consultor da administração” e, ao que o Observador apurou junto de fonte próxima, estaria “em transição” e a preparar-se para assumir um importante dossiê dentro do Banco de Portugal, nessa qualidade de consultor da administração. Passou, porém, a ganhar menos do que o salário que auferia enquanto era administrador (em 2024, 15.905 euros por mês, um valor bruto, pago 14 vezes).
Quanto menos? O Banco de Portugal não esclarece, nem o próprio Hélder Rosalino, que não respondeu às tentativas de contacto por parte do Observador. A realidade é que não há informação pública sobre os salários auferidos por estes “consultores da administração”, nem tão pouco é possível saber exatamente quantos consultores da administração existem ao serviço do Banco de Portugal.
Estes “consultores” são antigos altos quadros do Banco de Portugal que, no caso daqueles que cumprem mandatos de administração, não regressam aos seus postos originais (até porque esses cargos terão sido, entretanto, ocupados por outras pessoas). Passam a estar disponíveis para projetos especiais como organização de conferências internacionais ou elaboração de relatórios especiais em temas da sua experiência e de acordo com a sua senioridade.
De acordo com a informação obtida, esses consultores normalmente regressam à posição na grelha salarial que tinham, ou seja, voltam a ganhar o mesmo que ganhavam antes da suspensão do trabalho (para ir para administrador ou para funções fora do Banco de Portugal). São alguns exemplos Pedro Duarte Neves e José de Matos, ambos ex-vice-governadores do Banco de Portugal (Matos, recentemente aposentado, foi, inclusivamente, presidente da Caixa Geral de Depósitos).
“Os consultores da administração não ganham todos o mesmo, depende daquilo que ganhavam antes“, explicou uma fonte ao Observador. Não existindo informação pública sobre os vencimentos dos “consultores” da administração, e não querendo o Banco de Portugal responder às questões feitas pelo Observador, a prática comum indica que Hélder Rosalino terá regressado ao patamar remuneratório que tinha no início de 2014, quando assumiu a direção do Departamento de Emissão e Tesouraria.
Por serem equiparáveis a um cargo de direção, essas funções implicam um salário significativamente mais baixo do que aquele que Rosalino auferia enquanto administrador (até setembro de 2024). Existe, portanto, uma “despromoção” salarial face ao valor auferido enquanto Rosalino estava nas funções (sempre transitórias) de administrador do Banco de Portugal.
Porém, no diploma que criou as bases para a (fracassada) nomeação, o Governo determinava que se tomasse como “referência o vencimento ou retribuição base média efetivamente percebido durante o ano anterior à data do despacho de designação“. É isso que está explícito nas alterações feitas na última quinta-feira ao decreto-lei n.º 144-B/2024 (o decreto que, em julho, criou a secretaria-geral do Governo). Esta regra, no entanto, é a que normalmente se aplica para que se tome em consideração a totalidade de um ano.
E o que é que isto significa, na prática? No caso de Hélder Rosalino, não chegou a ser feito o despacho de designação – a sua escolha foi comunicada pelo gabinete do primeiro-ministro. Mas já que a intenção do Governo era que este assumisse funções em 1 de janeiro de 2025, o despacho de designação teria de ser feito ainda em 2024, o que significava que o ano de referência para o cálculo do vencimento seria o ano de 2023.
Ora, em 2023, Hélder Rosalino beneficiou de uma remuneração como administrador do Banco de Portugal durante a totalidade do ano, o que correspondeu nesse ano a 15.441,78 euros por mês (14 vezes) – ou seja, cerca de 216 mil euros (brutos) na totalidade do ano.
Esta formulação beneficiava Hélder Rosalino mais do que se fosse tido em conta o ano de 2024, já que o salário mais baixo dos últimos três meses do ano (depois de deixar a administração) iria fazer baixar a média salarial que seria tida em conta no cálculo do vencimento como secretário-geral do Governo – cargo que, afinal, já não irá ocupar.
Hélder Rosalino, hoje com 56 anos, começou a carreira profissional na Marconi, uma telecom britânica que foi integrada na Portugal Telecom nos anos 90. Até 1994, Rosalino foi “controller” financeiro da empresa, mas nesse ano passou para o Banco de Portugal ligado ao Departamento de Contabilidade e Pagamentos e, também, ao Departamento de Gestão de Recursos Humanos. Chegaria, aliás, já no início de 2010, a diretor deste departamento.
O trabalho no Banco de Portugal foi interrompido pouco depois, em junho de 2011, quando Hélder Rosalino deu o “salto” para a política. Integrando o governo de Pedro Passos Coelho, ficou com uma pasta “bicuda”: secretário de Estado da Administração Pública, em plena aplicação do programa da troika. O ministro das Finanças era Vítor Gaspar – outro quadro do Banco de Portugal, o que acabou por criar a perceção de que Rosalino era uma espécie de “delfim” de Gaspar, que o escolheu para ser o rosto de muitas decisões difíceis que aí viriam.
Afinal quem cortou nas pensões: PS ou PSD/CDS?
Foi com Hélder Rosalino que a Função Pública passou para as 40 horas semanais, com o aval do Tribunal Constitucional (uma medida revertida no primeiro governo de António Costa, que retomou as 35 horas). Mas aquela entidade também lhe impôs algumas derrotas. Foi o caso da lei da requalificação que previa pela primeira vez a possibilidade de funcionários públicos (que fossem colocados em inatividade) serem despedidos e que era considerada pelo governo de então para a chamada “reforma do Estado”.
Esta tinha o objetivo de substituir a mobilidade especial e abranger funcionários públicos que então eram considerados excedentários. Ou a convergência das pensões, com a imposição de um corte de 10% nas pensões dos funcionários públicos acima de 600 euros, argumentando que viola o princípio da proteção de confiança. No currículo tem a criação da Cresap, a entidade criada com o intuito de trazer maior transparência às nomeações na administração pública.