Em Portugal, uma das principais causas de morte e incapacidade continua a ser o acidente vascular cerebral (AVC), associado a fatores de risco como a idade, diabetes, tabagismo, hipertensão arterial ou obesidade.
Para controlar a incidência e as consequências do AVC e melhorar os cuidados de saúde, incluindo os de reabilitação, o Estado português subscreveu, em 2021, um plano desenhado para todos os países europeus – o European Stroke Action Plan 2018-2030.
Enquanto médico fisiatra, e agora presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação (SPMFR,) não posso deixar de sublinhar a importância da consolidação desta estratégia. O reforço de equipas multiprofissionais em todos os hospitais, centros de referência para programas intensivos, nos cuidados continuados e nos cuidados de saúde primários procura garantir um melhor acesso a reabilitação em todas as fases do processo de recuperação.
Trabalho diariamente em reabilitação de sobreviventes de AVC e tenho acompanhado de perto como, nos últimos anos, se tem apostado na expansão da rede que vai cobrindo progressivamente o nosso país. Politicamente, tem sido aceite o alargamento de vagas para a especialidade de Medicina Física e de Reabilitação (MFR), sob proposta da própria Ordem dos Médicos. E, consequentemente, há cada vez mais recursos humanos e tecnológicos ao serviço de hospitais públicos e privados.
Seguindo o modelo lançado pelo Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, foram abertos pelo país novos centros de reabilitação públicos (do Norte, em Valadares, da Região Centro, na Tocha, do Sul, em São Brás de Alportel) e centros especializados no setor social (Hospital da Prelada, no Porto). Houve, também, uma política de expansão da rede nacional de cuidados continuados com tipologias especificamente orientadas para a reabilitação. E manteve-se a rede de unidades de MFR convencionadas com o Serviço Nacional de Saúde.
Apesar de todos estes progressos, porém, há ainda um longo caminho a percorrer para melhorar a qualidade e o acesso à reabilitação dos cidadãos.
Na SPMFR eu e os meus colegas da direção tomámos conhecimento de um estudo recente que concluiu que 70% dos sobreviventes de AVC em Portugal não têm acesso a reabilitação intensiva após os primeiros cuidados prestados no hospital. Surpreendidos pelo retrato traçado, decidimos analisar este trabalho numa perspetiva mais alargada do sistema nacional de saúde.
É que todos os anos, em Portugal, há cerca de vinte mil novos sobreviventes de AVC. E, destes, cerca de 40% necessitam de programas de reabilitação, mas nem todos precisam ser integrados em programas de reabilitação intensiva.
O programa de reabilitação destes sobreviventes está definido numa norma da Direção-Geral de Saúde (Norma de Orientação Clínica 54/2011) e é desenhado de acordo com a gravidade, a idade, e uma multiplicidade de fatores que podem influenciar o tratamento. Por outro lado, otimizam-se os recursos disponíveis e ao sistema nacional de saúde exige-se a melhor resposta possível.
No AVC com défices ligeiros, por exemplo, o doente deve ser encaminhado, preferencialmente, para tratamento ambulatório, seja hospitalar, social ou convencionado. Nos casos de AVC com défices moderados a graves, o doente poderá ser internado num centro especializado, num serviço de Medicina Física e de Reabilitação com internamento ou, mesmo, numa Unidade de Cuidados Continuados.
O estudo que referi conclui que na Unidade Local de Saúde de Matosinhos, onde foram recolhidos os dados entre 2018 e 2019, os doentes não foram referenciados de acordo com o previsto na norma, com potencial prejuízo para os próprios. Consideramos que, focando-se num único centro, estas conclusões não podem, naturalmente, ser generalizadas a outros centros e muito menos à realidade nacional.
Não podendo ser um retrato nacional dos cuidados, também as propostas dos investigadores para novas políticas nacionais de circuitos de reabilitação não têm qualquer suporte técnico-científico. Quando muito, o estudo poderia apoiar decisões na instituição em que os dados foram colhidos.
Certo é que os resultados deste estudo se encontram com o que defendemos há vários anos: o processo de referenciação de todos os doentes com AVC, em todos os hospitais, deve ser feito por médicos fisiatras – especialistas na avaliação e no prognóstico/potencial de reabilitação.
As normas nacionais e internacionais ditam que a cada sobrevivente de AVC deve ser oferecida a oportunidade de ser avaliado e orientado por um médico fisiatra, logo na fase aguda, para que possa ser encaminhado adequadamente. Só cumprindo as normas todos terão igual acesso aos melhores cuidados de reabilitação.
Consideramos também necessário esclarecer que, naquele estudo, os investigadores propõem que se garanta uma reabilitação intensiva e multiprofissional ao longo de três a seis meses a cerca de 70% dos utentes, aumentando assim o número e duração da estadia nas unidades de cuidados continuados de convalescença.
Porém, a reabilitação intensiva é feita em centros especializados de reabilitação e não em Cuidados Continuados de Convalescença (como é referido no dito estudo), que, embora disponham de camas de internamento, não dispõem das múltiplas valências daqueles.
É da maior relevância estudar todos os circuitos de referenciação a nível nacional e traçar um retrato de todas as deficiências e insuficiências para que as políticas de saúde, que defendem os sobreviventes de AVC, sejam frequentemente atualizadas.
“Minha saúde, meu direito.” Este foi o lema deste ano da Organização Mundial da Saúde para celebrar o Dia Mundial da Saúde. Não confinemos este desígnio a um só dia.
Renato Nunes, médico fisiatra, é atualmente diretor do Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Hospital da Prelada, onde em 2019 coordenou a instalação da Unidade de Reabilitação de AVC. É presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação e coordenador da respetiva Secção de Reabilitação de AVC.
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