Todos conhecemos alguém assim. Gente brilhante, de quem sabemos que virão, ou poderiam vir, grandes obras, conversadores que acrescentam sempre perspetivas sábias ou originais sobre vários assuntos, mais rápidos, mais espertos, mais cultos, que todos os outros. Todos nós, em suma, conhecemos um, ou dois, ou vários, génios. Génios destes, não consagrados, mas em quem admiramos o espírito vivo, capaz de se bater com os grandes da história da humanidade.
A ideia de que muitos destes espíritos morrem sem deixar testemunho perene do seu brilhantismo é atrozmente inquietante. Quantas grandes obras críticas, quantos monumentos filosóficos, se não perderam graças à simples indolência do espírito que se contentou em fruí-las na sua própria cabeça, dando apenas uns vislumbres dessa extraordinária vida interior aos que o rodeavam? A literatura produziu alguns retratos destes homens, embora retratos baços, que poucas vezes atingem a verdadeira dimensão desta personalidade. Vemos paródias a estas consagrações de génios não consubstanciados, como no Pacheco das Cartas de Fradique Mendes, ou desejos deste génio, convicções de uma grandeza futura, como no Lucien das Ilusões Perdidas; mas estes casos partem do princípio de que o tal brilhantismo não é verdadeiro e de que, na verdade, a idolatria social a estes homens é a idolatria devotada aos bezerros de ouro.
Ora, o fenómeno verdadeiramente interessante não são os falsos génios; são aqueles génios que se perdem, que por alguma razão, ou porque não nascem com ambição à altura da cabeça e se contentam com gloríolas privadas, ou porque na verdade têm um temperamento demasiado disperso para se dedicarem com afinco a uma obra séria, ou porque a rapidez da inteligência os lança numa espécie de aborrecimento geral, em que tudo parece demasiado simples ou insignificante para ser tratado; destas figuras, só uma nos surge como um tratamento literário condigno, graças ao miraculoso tratamento de um discípulo igualmente genial e com uma invulgar modéstia literária, capaz de perceber que, sem uma recolha aturada dos seus ditos, o génio do seu mestre nunca seria verdadeiramente compreendido.
Essa figura é Samuel Johnson (1709-1784), um homem que deve boa parte da sua posteridade ao seu biógrafo, John Boswell, também ele um caso fascinante de um tipo muito próprio de génio literário, um génio discreto e quase involuntário, em muitos casos a roçar o impercetível, porque se trata de um génio inteiramente submisso, o génio do editor posto em palavras próprias, que consiste em perceber o que é nos outros realmente importante.
Não nos enganemos: a reputação de Samuel Johnson não se deve inteiramente a Boswell; o Dr. Johnson foi um dos eruditos mais estimados do seu tempo, um purista da língua reconhecido por todos os académicos, um classicista admirado e um dos escritores mais lidos do século XVIII. A sua caminhada da pequena cidade de Litchfield até ao estrelato, a pertinácia que fez dele um dos primeiros escritores profissionais da modernidade, desdobrado em artigos e ensaios essenciais para a popularização da imprensa, o seu dicionário, tudo isso é impressionante e contribuiu para a sua fama. No entanto, contribuiu essencialmente para a sua fama em vida. O admirável na Vida de Samuel Johnson, de Boswell, é a compreensão que este tem de que aquilo que fez a fama do seu mestre em vida se está, de algum modo, a perder e que, no entanto, há outro lado no Dr. Johnson que faz dele uma figura imortal.
Johnson ficou, antes de mais, conhecido pelo seu dicionário. É um trabalho insano, e que aliás não condiz com a reputação semi-indolente que lhe ficou de uma certa interpretação da vida de Boswell. O que Johnson fez, sozinho, foi uma empreitada semelhante à que a Academia Francesa demorou, em conjunto, meio século a fazer. Um dicionário criado a partir do zero, um dicionário prínceps, por assim dizer, tem qualquer coisa de semelhante ao empreendimento quimérico de contar tudo o que existe; imagine-se o que é, a partir do nada, contar toda a linguagem. É claro que este trabalho impressionante – e o de Samuel Johnson é feito com todo o rigor que só um batalhão de linguistas conseguiria – bastaria para impulsionar a reputação de Johnson; no entanto, criaria uma reputação que encontramos em cientistas, matemáticos, físicos, e não em homens de letras.