O primeiro-ministro foi autêntico quando falou sobre o que pensa dos jornalistas e do jornalismo. Não há grandes dúvidas que Luís Montenegro pensa exatamente aquilo que disse: que há chefes ou superiores que sopram perguntas-encomenda pelo auricular, que uns já trazem a pergunta escrita no telemóvel e que os jornalistas se prendem com a espuma dos dias e a pequena política. O falsete de indignação comprovou-lhe a genuinidade quando sugeriu que muitos jornalistas são autómatos e pau-mandados acríticos de alguém superior.
O primeiro-ministro tem todo o direito de ter esta opinião, embora ela seja, naturalmente, injusta e mal informada. Montenegro foi um bocadinho Ventura (ao ser conspirativo), um bocadinho Emília Cerqueira (quando escreveu que a reação foi exagerada, ao bom estilo das “virgens ofendidas”), um bocadinho Rui Rio (quando pediu outro ritmo das notícias, um jornalismo mais “tranquilo”) e até um bocadinho António Costa (quando se queixou de ser inopinadamente apanhado sobre um tema de atualidade em eventos que nada têm a ver com a pergunta).
O primeiro-ministro disse que uma das coisas que o “impressiona” é ver que a maior parte dos jornalistas tem “um auricular, no qual lhe estão a soprar a pergunta” e outros que “pegam no telefone e fazem a pergunta que já estava previamente feita”. Sobre os auriculares, já muito se disse e escreveu. Como foi explicado em peças jornalísticas e avulso por jornalistas — por vezes até com alguma dispensável verve — o auricular serve na esmagadora maioria dos casos para dizer aos jornalistas para entrarem e saírem de diretos e outras indicações que vão desde um ‘tens cocó de pombo no ombro’ até a um ‘prepara-te, estou a ver aqui pelas imagens de drone que ele está a chegar’.
Mas é preciso que leitores, ouvintes e telespectadores saibam: sim, há perguntas que são sugeridas pelo auricular. E ainda bem que assim é. Se um jornalista estiver fechado numa sala três horas, se não ouviu a reação de um outro político, se não leu um documento oficial que entretanto já chegou à redação, tem de ser avisado para estar o mais informado possível. No caso da política, pode apenas ser informado do que disse outro líder partidário, alguém do partido do visado, de uma promulgação presidencial, entre um sem-número de hipóteses. Se a pergunta já vier formulada, desde que seja boa, não se percebe qual é o mal de que seja feita.
A “pergunta premeditada” que já vem escrita no telemóvel, e que também impressiona Montenegro, é outro exemplo de bom jornalismo. Se a pergunta já está escrita é sinal de que, muitas vezes, o jornalista se informou, pensou sobre a pergunta e estudou a forma de obter a resposta mais esclarecedora do político. Nada disto desvaloriza a profissão, como diz o primeiro-ministro. Pelo contrário.
Outra das críticas do primeiro-ministro tem a ver com o jornalismo ofegante. Sugere Luís Montenegro que os jornalistas façam perguntas sobre o evento em específico, em vez de se perderem com minudências como, por exemplo, o Orçamento de Estado. A questão é: passaria pela cabeça de alguém que, caso o primeiro-ministro visitasse o Centro de Valorização do Burro de Miranda (ou o lince ibérico, para não parecer um ataque ad-burrimen aos burros-de-miranda) em período de orçamento, os jornalistas o questionassem sobre o animal em vez das negociações para viabilizar o Orçamento?
O primeiro-ministro até tem razão se o que está a dizer é que se devia privilegiar os trabalhos mais distendidos, dar mais tempo aos jornalistas para escrever grandes reportagens e grandes investigações, mas no jornalismo sobre política — que assenta uma boa parte na atualidade e é influenciado pela voragem da mesma — o grande obstáculo, muitas vezes, é a ausência de respostas claras dos políticos. Quando um ministério não responde ou só responde ao que lhe interessa, quando um ministro limita o número de perguntas a menos do que os dedos das duas mãos (ou até uma) ou um dirigente nacional decreta silêncio aos seus companheiros de partido, são os políticos que estão a contribuir para que haja menos informação. O que significa mais opacidade e menos rigor no trabalho jornalístico.
O que não valoriza a profissão é fazer conferências de imprensa sem direito a perguntas, como o primeiro-ministro já fez várias vezes. O que não valoriza o jornalismo é que Luís Montenegro, a par de outros políticos, valorizem formatos de entretenimento, que são, naturalmente, menos escrutinadores. Como candidato a primeiro-ministro, na campanha e pré-campanha das legislativas — altura de esclarecimentos e escrutínio — Montenegro não deu entrevista a nenhum jornal ou rádio que irá, previsivelmente, colocar na lista de elegíveis para apoio nas assinaturas definido no Plano para os Media.
Como candidato a primeiro-ministro, Montenegro limitou-se a dar, em fevereiro 2024, uma entrevista à CMTV ainda antes do período de pré-campanha. Cedeu também entrevistas mais curtas à TVI/CNN e à SIC, que embora escrutinadoras, eram limitadas no tempo. Recusou entrevistas de dezenas de jornais e rádios de referência, mas foi ao programa da manhã de Cristina Ferreira (já tinha ido à Júlia em dezembro), ao Alta Definição e ainda foi ao ‘Isto é Gozar com Quem Trabalha’, de Ricardo Araújo Pereira, e ao ‘Bom Partido’, de Guilherme Geirinhas. Apesar do talento inegável dos dois últimos humoristas e as capacidades lacrimogénias de Daniel Oliveira, o então candidato a primeiro-ministro não privilegiou valorizar o jornalismo, mas o entretenimento, optando por um lado mais show, mais espetáculo — e também mais íntimo da sua vida.
Depois de ser primeiro-ministro, Luís Montenegro também tem optado por não dar entrevistas, contando-se apenas alguns minutos à Now no dia de estreia do canal e a entrevista à SIC em vésperas de entregar o orçamento. Pelas escolhas de entrevistas do primeiro-ministro em 2024, sabemos que Montenegro chama ‘xuxi’ à mulher, mas desconhecemos ainda, só para dar um exemplo, quantas vezes e em que dia se reuniu com André Ventura para falar de Orçamento.
Sobre o novo arrufo com André Ventura, Luís Montenegro tem, aliás, optado por uma postura de não falar do assunto para não o alimentar, mas sabe que quando duas pessoas se acusam mutuamente de mentir, só os jornalistas podem seriamente apresentar as versões dos factos. Para isso precisam de informações credíveis, de detalhes, de dados para que os possam apresentar aos portugueses. Valorizar o jornalismo é isso: responder às perguntas dos jornalistas. Enfim, informar.
Como em todas as profissões, há jornalistas bons e maus. Sendo o contrário de um corporativista (embora disfarce bem neste artigo), conheço a esmagadora maioria dos jornalistas que se apresentam diariamente à frente do primeiro-ministro. E não creio que nenhum deles seja dispensável. Ou que não esteja ali a fazer nada. Vi muitos deles a trabalhar arduamente em campanhas eleitorais, congressos e afins. Vejo outros que já foram para zonas de guerra, tragédias e outros lugares onde é exigida uma coragem física (e mental) muito superior a quem é violentado diariamente, imagine-se, com perguntas sobre o Orçamento do Estado.
O primeiro-ministro tem direito a pensar o que pensa, mas cometeu um erro. Como dizia o seu antecessor, nem à mesa do café um ministro se deve esquecer que é ministro. E o primeiro-ministro, que acredito que não quis atacar a profissão, foi o que acabou por fazer. Mesmo que a ideia fosse só ser provocatório q.b. Por mais anos que passem, Montenegro vai ser sempre o primeiro-ministro que queria os jornalistas mais tranquilos e que deixou no ar que há repórteres teleguiados (por um diretor, um alien ou quem sabe George Soros) a utilizar os jornalistas como meras marionetas. Da mesma forma que ninguém esqueceu que Costa enviou um SMS arisco ao diretor-adjunto do Expresso.
Nesses apartes que fugiram ao discurso escrito e preparado (às vezes é melhor ir preparado, nem que seja com tópicos no telemóvel), o primeiro-ministro deu força aos que diariamente classificam o trabalho jornalístico honesto de jornalixo. Que chamam os jornalistas de jornaleiros. Que inundam as caixas de comentários com insultos sobre o carácter e a ética dos jornalistas. E isso, senhor primeiro-ministro, é que não valoriza nada a profissão.
Nota: o único problema que qualquer jornalista pode ter com a entrevista de Maria João Avillez é inveja por não ter tido o mesmo exclusivo. É verdade que hoje tudo se confunde: que em reality shows, as bolas de vento fazem apresentadores parecer jornalistas, ou que há jornalistas que se tornam protagonistas políticos. Mas isso só prova que o que define um jornalista não é se têm a carteira profissional em dia, é se pretendem informar com isenção. Se é livre de interesses no momento em que faz as questões, por exemplo, numa entrevista. O jornal Avante! tem jornalistas com carteira profissional e não me parece que sejam mais isentos do que Maria João Avillez, que não tem a carteira em dia. As regras existem para serem cumpridas — até por uma questão de justiça, já que quem tem carteira não pode fazer publicidade, por exemplo –, mas não digam que Maria João Avillez não é jornalista. É, sim, uma jornalista sem carteira profissional válida. Misturar a entrevista concedida por Montenegro à SIC com as declarações que fez horas antes é, também, um péssimo serviço que se faz ao jornalismo.