Assistimos indiferentes ao protelar dos julgamentos de José Sócrates, Manuel Pinho e Ricardo Salgado e o país político, alguns com responsabilidades no passado, escandaliza-se, revolta-se e rasga as vestes em manifestos contra o Ministério Público e, especialmente, contra a Procuradora-Geral da República. Tudo por causa da operação Influencer e o envolvimento de António Costa, que considerou não ter condições para governar o país, mas teve uma avaliação completamente diferente sobre as condições para a governação da União Europeia como presidente do Conselho.
Todas estas personalidades que assinaram o manifesto, algumas com uma vasta, rica e até recente experiência política, têm seguramente a noção que, manifestarem preocupações com o estado da Justiça apenas quando toca a um dos seus, transmite a pior mensagem possível. Como se se estivessem a proteger, como se se considerassem acima da lei, como se esta PGR não servisse porque aplica a regra básica do Estado de Direito: a Justiça é cega e igual para todos. Pior ainda, estão a dizer-nos, indirectamente, que uma boa PGR, um Ministério Público bom, é quele que inviabiliza ou arquiva investigações à classe política.
É muito difícil perceber se existem ou não razões para dizer que o Ministério Público está sem coordenação e se está a abusar das suas competências, pura e simplesmente porque a informação a que temos acesso no espaço público é enviesada e já devíamos ter aprendido isso com o caso de José Sócrates. Quem fala e aparece no espaço público são em geral pessoas cujo objetivo fundamental é defender as pessoas que representam, como é o caso dos advogados. Assim como temos de ter consciência que as fugas de informação podem ser seletivas, não nos dando a visão do todo. Realmente não temos a visão de conjunto, perspetiva essa que só quem está a investigar tem, mas não pode ou não deve falar.
A entrevista que a PGR Lucília Gago deu a Vitor Gonçalves na RTP deu-nos muitos dados para refletir e é pena que só agora tenha falado, que não tenha optado por falar pelo menos uma vez por ano. Não se queira responsabilizar o Ministério Público pelos problemas da Justiça, esta foi uma das afirmações, aqui citada livremente, que vale a pena destacar. E que nos obriga a ir ao básico: é ao poder político que cabe melhorar o funcionamento da Justiça; foi o poder político que aprovou as regras em que se move a Justiça; é o poder político, nomeadamente o Governo, que dá (ou não dá) recursos à Justiça.
João Galamba, ex-ministro das Infraestruturas e ex-secretário da Energia esteve sob escuta durante quatro anos. Ninguém pode concordar com isso. Mas a classe política tem de se perguntar de quem é a responsabilidade e não é seguramente do Ministério Público. Primeiro porque qualquer escuta tem de ser validada por um juiz. Em segundo lugar porque as regras, aprovadas pelos políticos, permitem que um juiz aprove sucessivas escutas, de tal maneira que se arrastam por quatro anos.
A classe política sabe igualmente que as regras que aprovaram impõem o princípio da legalidade na investigação penal, ou seja, o MP deve abrir um inquérito sempre que tenha notícia de um crime. Estaria a violar os seus deveres se não abrisse um inquérito a António Costa. Ah sim, podia não o divulgar. E hoje estaríamos a discutir porque não o divulgou, assim que se soubesse do inquérito.
Quererá a classe política passar para o princípio da oportunidade? Em que acaba por dar mais poder ao Ministério Público de que tanto se queixa? Não se quer acreditar que a defesa do principio da oportunidade tenha como objetivo controlar politicamente a Justiça.
Houve aliás dois momentos em que Lucília Gago não esteve bem na entrevista. Um foi quando entrou nas teorias da conspiração, usando a mesma receita daqueles que a criticam. Outro foi quando, dizendo primeiro que não levam em consideração os calendários políticos, acabou a afirmar, mais à frente, que há casos em que adiam actuações por causa do calendário político. Assim como um jornalista não pode nem deve levar em conta as consequências das notícias que dá – claro que podem existir casos extremos que são muito difíceis de identificar em tempos de paz -, também o Ministério Público, para cumprir o princípio da legalidade, não pode olhar para calendários políticos. Há coincidências? De facto mas podem perfeitamente estar relacionados com as motivações da batalha política que mais perto das eleições se tornam mais agressivas. E veja-se o que está a acontecer com a candidata a presidente da Comissão Europeia.
Como disse a PGR Lucília Gago na entrevista, a decisão de se demitir por parte do ex-primeiro ministro foi pessoal e política. Mas aos socialistas apoiantes de António Costa dá jeito dizer o contrário, indo ao absurdo ponto de acusar a PGR de ter feito um golpe de Estado. Tudo isto para que não se diga que António Costa aproveitou a oportunidade para sair do cargo, como desejava, sem ser acusado de fugir, como aconteceu a Durão Barroso. E hoje, quando olhamos para o que entretanto se passou, nomeadamente para a sua escolha para presidente do Conselho Europeu sem que o processo em Portugal, ainda por arquivar, tivesse impedido a decisão dos líderes europeus e a sua aceitação, percebemos como a oportunidade oferecida pelo famoso parágrafo foi bem aproveitada.
Os exemplos dados por Lucília Gago, para ilustrar que António Costa fez uma escolha, foram aliás bastante elucidativos. Estamos a falar do processo contra Ursula von der Leyen por causa das vacinas da Covid e que, imagine-se, vai ter desenvolvimentos esta semana. O Tribunal de Justiça Europeu vai emitir um acórdão sobre o caso das vacinas na quarta-feira, dia 17 de Julho, exactamente na véspera de a candidata à liderança da Comissão Europeia ir ao Parlamento Europeu para se submeter à votação dos eurodeputados. O que não diria alguma classe política portuguesa sobre esta coincidência.
O segundo exemplo dado pela PGR foi o de Pedro Sanchez que tem a mulher e o irmão envolvidos em casos judiciais e que, depois daquilo que designou como uma reflexão, acabou por não se demitir.
Por estes dois casos percebe-se bem que António Costa escolheu demitir-se. A sua vida política seria difícil, especialmente por causa do que se passou com o seu chefe de gabinete, mas não seria impossível até porque tinha maioria absoluta e o partido estava, como está, consigo. E hoje ainda não sabe se não tem de responder perante a Justiça. E não, não é o Ministério Público que está em causa se o processo acabar arquivado porque é assim que funciona, para todos, a Justiça.
É muito difícil perceber racionalmente o que leva a estes ataques ao Ministério Público por parte da classe política. Será, como disse João Marques de Almeida no programa Fora do Baralho, porque se quer condicionar a escolha do próximo PGR? É de facto incompreensível, tendo em conta que a classe política tem de ter consciência que, face ao estado da Justiça sentida e vista pelos cidadãos, estas criticas apenas alimentam os populismos, apenas fazem com que se corra o risco de o cidadão comum pensar que se está a defender que a justiça seja cega, mas para o que fazem os políticos.