As circunstâncias, as consequências e as motivações são pouco claras, levantam dúvidas no meio de ativistas, investigadores e oposição e levam alguns, como Paula Cristina Roque, especialistas em assuntos africanos, a falar de um “caos organizado” e ação “intencional”. E outros, como Venâncio Mondlane, a acusar os guardas prisionais de terem aberto as portas, aludindo a táticas soviéticas.
Quitéria Guirengane, do Movimento de Defesa da Liberdade de Associação (plataforma que junta organizações não governamentais) e dirigente do Nova Democracia, defende que tudo parece apontar “para uma estratégia montada de libertar criminosos para justificar o terrorismo nos bairros”, frisa, a partir de Maputo, ao Observador. “Cheira a agenda maquiavélica da Frelimo para lançar o terror”.
A conhecida ativista, que recebe permanentemente notícias de vários pontos do país, bem como pedidos de ajuda, insiste em dizer que a maior parte das pessoas que a contacta está convencida de que se trata de uma ação concertada: “Estes grupos estão bem instruídos, pois os ataques com as catanas acontecem ao mesmo tempo em várias partes do país, não pode ser coincidência”. Dizem que “são os terroristas que fugiram da cadeia, mas, se assim é, porque é que não divulgam nome e fotos deles para as pessoas ajudarem a identificar? Parece uma agenda muito bem montada para criar pânico e terror na população, uma situação de violência generalizada, para afastar as pessoas das manifestações. Aliás, se de noite estão a patrulhar, de dia precisam de dormir, não se podem manifestar nas ruas”, nota.
As contradições do governo sobre o que aconteceu na Cadeia Central de Maputo só acenderam mais a polémica e alimentaram mais as dúvidas. As versões da ministra da Justiça e do comandante geral da Polícia da República de Moçambique (PRM) não coincidem.
Bernardino Rafael, que confirmou a evasão no dia de Natal, disse tratar-se de uma ação “premeditada” dos manifestantes pós-eleitorais e avisou que, nas 48 horas seguintes, “se esperava uma subida vertiginosa de todo o tipo de criminalidade” em Maputo. Na conferência de imprensa, adiantou ainda que apenas 150 tinham sido recapturados e que entre os fugitivos estavam “alguns terroristas altamente perigosos”.
Fuga de mais de 1.500 reclusos de cadeia de Maputo faz 33 mortos
“Facto curioso é que naquela cadeia nós tínhamos 29 terroristas condenados, que eles libertaram. Estamos preocupados, como país, como moçambicanos, como membros das Forças de Defesa e Segurança”, afirmou Bernardino Rafael.
Segundo o comandante geral, a fuga desta cadeia situada na cidade da Matola, a 14 quilómetros do centro da capital moçambicana, que contava com cerca de 2.500 condenados e detidos, resultou da “agitação” de um “grupo de manifestantes subversivos” nas imediações. “Fazendo barulho nas suas manifestações, exigindo que pudessem retirar os presos que ali se encontram a cumprir as suas penas”, os manifestantes causaram “agitação” no interior da cadeia B.O. Esses distúrbios “levaram à queda do muro que separa outro presídio ao lado, e eles aproveitaram a oportunidade para fugir pelos portões. Houve um confronto com os companheiros que garantem a segurança, mas não conseguiram prender os prisioneiros, 1.534 presos fugiram”, contou, acrescentando que 33 morreram.
A versão da ministra é diferente. Helena Kida, numa entrevista à televisão privada STV, disse que a evasão de presos da cadeia central de Maputo não estava relacionada com as manifestações pós-eleitorais e garantiu que o motim se iniciou no interior do estabelecimento prisional.
Aliás, Wilker Dias lembra que não houve manifestações perto das duas cadeias, e que “seria muito complicado ter uma invasão externa por manifestantes sem armas à única cadeia de máxima segurança”. Por outro lado, refere relatos de pessoas que “dizem que lhes abriram os portões” e que se veem nos vídeos “presos a saírem normalmente e sem o uniforme cor de laranja de reclusos, logo tiveram tempo para trocar de roupa e sair”.
E, tal como Quitéria Guiregane e Venâncio Mondlane, aponta o dedo às declarações de Bernardino Rafael que em vez de procurar tranquilizar a população, lançou o pânico, “criou agitação” dizendo que esses reclusos agora “iriam assaltar as casas, matar e raptar, violar mulheres”. O comandante geral da polícia chegou mesmo a dizer que iriam entrar em casa dos manifestantes, “parecia que não só conhecia muito bem estes reclusos pois sabia o que podiam fazer como até os instruiu ao dizer o que iriam fazer”, condenou Venâncio Mondlane na sua comunicação de quinta-feira.
O caso das cadeias é a prova de “um caos organizado de várias vertentes, é intrumentalizado” para “justificar uma reação mais dura do regime”, considera Paula Cristina Roque, especialista em assuntos africanos,
A investigadora equipara o que se está a passar em Moçambique ao que se passou no Sudão ou na África do Sul em julho de 2021. “Elementos dos serviços secretos sul-africanos que estavam a favor de Jacob Zuma instrumentalizaram os ataques a propriedades privadas e públicas e depois a população, que estava com fome, aproveitou”.
Paula Cristina Roque diz estar a ver “a mesma estratégia a ser usada pela Frelimo”, pois “a anterior, de balear e assustar os manifestantes, não resultou depois de um carro blindado ter atropelado propositadamente a alta velocidade uma manifestante acendendo um coro de protestos internacionais”.
Protestos paralisam centro de Maputo. Tensão entre manifestantes e polícia cresce após carro blindado atropelar mulher
A Frelimo teve de mudar de tática “e infiltrou grupos de jovens de vários quadrantes que aderiram facilmente à desobediência civil e que conseguem causar o caos para deslegitimar as reivindicações destas populações e descredibilizar Venâncio Mondlane”, sublinha.
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“Não é possível haver simultaneamente quatro prisões em que os prisioneiros saem em liberdade sem reação das forças de segurança. Podemos ver provavelmente nestas evasões um total de dez mil homens, o que é uma milícia”, alerta. Juntando a isso “as 14 esquadras da polícia que desarmaram — sendo que possivelmente até tinham armas em casa, pois o desarmamento pós guerra civil não foi muito extenso em Moçambique, a Renamo [partido rival da Frelimo durante a guerra civil], quando voltou para a mata tinha armas enterradas, logo há armas em Moçambique — temos todos os ingredientes para uma situação que agora já é dramática mas que pode ser ainda mais explosiva”.
A investigadora teme “que isto tenha sido instrumentalizado para assustar a sociedade, virar as pessoas contra Venâncio Mondlane e comprar tempo à Frelimo para dizer à comunidade internacional que este homem não pode ser Presidente nem membro de um Governo de transição nacional porque instigou a violência e um golpe de Estado”. É uma “estratégia sinistra, mas eficaz”, lamenta Paula Roque.
No quadro do anúncio do Conselho Constitucional eram esperadas mais manifestações, pelo que Rodrigo Adão da Fonseca, português que durante vários anos revia diariamente relatórios sobre segurança e defesa em Moçambique, esperava que de alguma forma a autoridade do Estado estivesse preparada para um agravamento da situação. Daí que o responsável de cibersegurança de várias empresas e organizações em Portugal, que é próximo de Venâncio Mondlane, veja no que está a acontecer “uma vontade deliberada de aumentar o caos para deslegitimar Venâncio”.
O também colunista do Observador destaca que “as pilhagens e saques e toda esta sensação de caos e medo visam causar a tensão clássica entre liberdade e segurança, para legitimar a aceitação dos limites dos direitos”. Rodrigo Adão da Fonseca diz “que num país de muita fome há sempre espaço para saques e roubos, alguns até de polícias esfomeados, mas daí a conseguir-se um motim numa cadeia de alta segurança e a saída em massa dos reclusos vai um passo impossível, pelo que se cria a sensação de que o se pretende é gerar um ambiente de terror”.
A investigadora Paula Cristina Roque vai praticamente no mesmo sentido de Venâncio Mondlane, que na sua mensagem em direto no Facebook nesta quinta-feira, apelou aos manifestantes para não pilharem nem saquearem, pois não quer tomar posse a 15 de janeiro “no meio de escombros”. Acusa a polícia de, enviada pela Frelimo, arrombar lojas e armazéns para desviar a atenção do povo, frisando que enquanto “o povo retira bens a polícia não atua, só depois da retirada é que aparece, simulando que vai impor a ordem”.
Uma ideia que é partilhada pelo blogger Beleza em Pessoa ao assinalar que o grupo inicial que arromba portas de lojas e armazéns não é o grupo que entra e retira os produtos. Quitéria Guirengane lamenta que a Frelimo tenha conseguido dividir um povo que estava unido nos protestos, “nas manifestações pacíficas, em que os mais pobres e desfavorecidos estavam ao lado da classe média, dos pequenos empresários”. A ativista aponta para os vídeos que mostram a ação das forças de segurança no arranque de alguns saques para dizer que há fortes indícios de que são iniciados ou incitados por eles. “É uma forma de vingança, pois os pequenos empresários estiveram ao lado dos manifestantes”, considera.