Finalmente consegui perceber algo que me atormentava e que a grande crítica literária nunca soube resolver: por que razão Romeu e Julieta decorre em Verona e não em Moscovo? Ao nível da geoestratégia, a cidade russa foi sempre superior à italiana. E, ao nível do interesse histórico, entre 1591 e 1595 – período no qual Shakespeare escreveu a peça – o ambiente em Moscovo andava bem mais animado do que em Verona. Mas, realmente, o dramaturgo inglês sabia o que fazia.
Romeu e Julieta é uma tragédia que conta a história de dois adolescentes, cujo amor desafiava as convenções e as rivalidades da cidade. Ora, se a peça se passasse em Moscovo, ela ia terminar logo no II ato e não no V, como é habitual. Isto porquê? Porque a julgar pela facilidade com que pessoas contra o regime caem de varandas na Rússia, mal Julieta pusesse um pé na sua, havia logo uma derrocada. O que, no fundo, até era capaz de ser melhor. A construção pode estar cara, mas os venenos que o Romeu adquiriu também não devem ter sido lá muito baratos.
No início desta semana, as notícias anunciavam que Vladimir Shklyarov, um dos mais aclamados bailarinos russos da atualidade, morrera ao cair de uma varanda do quinto andar. Os meios oficiais locais dizem que Shklyarov estava a “tomar analgésicos” e a “preparar-se para uma cirurgia ao pé” e que acabou por ser vítima de um acontecimento “estúpido”, pois, após ter subido à varanda para apanhar ar e fumar, “perdeu o equilíbrio e caiu do quinto andar.” Ou seja, lá no fundo, e tratando-se de um bailarino que morreu ao perder o equilíbrio, estamos perante um acidente de trabalho.
Atenção, eu não digo que a justificação oficial não seja verdadeira. Acho é que corre o risco de cair na esparrela do “Pedro e o Lobo”. E não o digo porque, de 2022 até 2024, já caíram mortalmente de varandas, Pavel Antov, Ravil Maganov, Kristina Baikova e Mikhail Rogachev, todos conhecidos por levantarem “dificuldades” a Vladimir Putin. Digo-o, porque da mesma forma que a história do “Pedro e o Lobo” foi criada pelo compositor russo Sergei Prokofiev, em 1936, com um objetivo didático, depois de uma encomenda do Teatro Infantil de Moscovo, estas quedas “acidentais” também parecem ter um objetivo pedagógico, mas já não tão centrado na tentativa de ensinar às crianças os diferentes sons dos instrumentos musicais, como acontecia na obra o génio russo.
O curioso é que, se formos a ver, na Rússia, ninguém cai de varandas normais. Não há relatos de gente a cair da varanda do 1º andar, onde o pior que pode acontecer é amassar um arbusto. Na Rússia, só se cai de varandas do 12º, 15º ou 37º andar. Por isso, é que o melhor é desconfiar dos rooftop´s, em especial se forem em território soviético. Por cá há uma crise na habitação. Lá parece haver uma grande oferta de habitação acessível, em especial nos andares mais altos dos prédios. Mas só se cumprir uma condição: ser opositor do regime. Senão, não se está habilitado a ganhar o tão merecido prémio. Na verdade, isto até acaba por ser má publicidade e uma demonstração de pouca inteligência. Com tanto espaço e tantas quedas deste tipo, os russos não podiam ter alterado já o PDM para permitirem, exclusivamente, a construção de edifícios com rés-do-chão? Fica a dica.
O mais curioso é que quando alguém cai duma varanda na Rússia, nunca há testemunhas. As câmaras de segurança estavam “desligadas para manutenção”, os vizinhos a dormir e o porteiro, coitado, “não ouviu nada porque estava a resolver um Sudoku”. E, no fim, um relatório oficial vê-se forçado a concluir contra a sua própria vontade: “Morreu em circunstâncias trágicas, mas absolutamente acidentais”.
Na verdade, as varandas russas são uma inovação no mercado do mobiliário que pouca atenção tem merecido. Lá não são simplesmente estruturas salientes em locais de abertura de portas ou janelas, rodeadas de uma espécie de gradeamento. São, também, trampolins. É só pena que esta tecnologia de ponta tenha chegado tarde demais. Se tivesse surgido no tempo da guerra fria, o desfecho tinha sido bem diferente. Mas já nessa altura havia quem lhe visse prescrita uma “mudança de Identidade” ou receitado um “tratamento médico necessário”, como aconteceu a Vladimir Bukovsky, no tempo do Brejnev.
De facto, o problema das tiranias nunca foi o princípio da rampa deslizante. Foi sempre o princípio da varanda deslizante, que pode ser teorizado da seguinte maneira: a primeira queda é “acidental”, a segunda é “inevitável”, a terceira “inocente”, até que viver seja aceitar que qualquer um pode ser “acidentalmente” removido.