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O problema das reparações – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 12, 2024

Ta-Nehisi Coates é praticamente desconhecido entre nós, mas é uma referência incontornável nos Estados Unidos desde que publicou, em 2014, um artigo intitulado “The case for reparations” na revista The Atlantic. Embora tenha sido reconhecido como um dos melhores textos de jornalismo daquele ano (os norte-americanos têm um entendimento muito amplo de trabalho jornalístico), o artigo de 15 mil palavras constitui, na verdade, um ensaio sobre as desigualdades raciais nos Estados Unidos com vista a discutir seriamente a proposta de reparações – ao contrário do que fazem comediantes, como Dave Chappelle, que menorizariam, com as suas piadas, “o que era uma ideia séria, incisiva e profundamente inteligente” (The New Yorker).

O sucesso do texto de Coates resulta de o autor ter construído uma narrativa a partir do “último emblema do sonho americano”: ser proprietário da própria casa. Como afirma uma das pessoas entrevistadas no artigo:

“Estava decidida a comprar uma casa. Se toda a gente pode ter uma, eu também quero uma. Eu tinha trabalhado para os brancos no Sul. E vi como os brancos viviam no Norte e pensei: “Um dia vou viver como eles”. Queria ter armários e todas aquelas coisas que as outras pessoas têm.”

O reconhecimento desta humanidade comum e deste desejo comum de ter uma vida melhor transporta-nos, de imediato, para o argumento do autor, que pretende mostrar como, muito depois da 13.ª emenda que aboliu a escravatura em 1865, os negros norte-americanos continuaram a viver em condições de desigualdade. O caso particular da habitação e das dificuldades levantadas aos negros norte-americanos para usufruírem desse direito em condições de igualdade é usado por Coates para defender que os afroamericanos foram alvo de pilhagem e roubo não apenas no período de escravatura, mas também ao longo das décadas seguintes, ao ponto de os impactos se sentirem ainda hoje:

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“Quando as pessoas pensam em reparações, pensam imediatamente em pessoas que já morreram há 100 anos. Mas o argumento que estou a defender é diferente: não, o legado da escravatura prolonga-se na política do governo norte-americano, na política dos estados do Sul profundo, mesmo nas políticas das cidades e estados do Norte muito para além da escravatura. E os efeitos estão aí. E as pessoas que sofreram esses efeitos são as pessoas que foram alvo de discriminação na habitação, que sofreram discriminação no emprego, que sofreram discriminação na educação e estão bem vivas e connosco.” (NRP).

É por essa razão que, para Coates, medidas de promoção de diversidade, como a ação afirmativa, só “tangencialmente se relacionam com o problema específico dos negros: tudo que os Estados Unidos lhes retiraram ao longo de vários séculos”. Era esta a questão que deveria ser discutida na sociedade norte-americana, e o enorme impacto do seu texto levou a que, depois de décadas de tentativas por parte do congressista John Conyers, tenha sido criada uma comissão no Congresso sobre o tema, na qual Coates participou em junho de 2020.

Ta-Nehisi Coates formula naquele texto uma defesa das reparações, considerando que a sociedade norte-americana tem uma dívida para com os seus cidadãos negros. Mas importa notar os termos específicos dessa dívida: de acordo com Coates, e em harmonia com os princípios do pensamento que tenho vindo a designar como identitário, esta dívida não deve ser entendida como uma dívida pela escravatura em sentido estrito. O que está aqui em causa é mais do que isso: é considerar que a escravatura foi resultado de um sistema que criou as condições para que um grupo específico (os negros) fosse explorado por outro (os brancos).

Para legitimar essa exploração de supremacia branca, o segundo grupo criou – cientificamente, socialmente, politicamente, juridicamente – a noção de raça, que é central num sistema responsável pela pilhagem, roubo e extração da população negra que se verificam até hoje:

“Ignorar o facto de que uma das repúblicas mais antigas do mundo foi erguida sobre uma base de supremacia branca, fingir que os problemas de uma sociedade dual são os mesmos que os problemas do capitalismo desregulado, é cobrir o pecado da pilhagem nacional com o pecado da mentira nacional. A mentira ignora o facto de que reduzir a pobreza norte-americana e acabar com a supremacia branca não são a mesma coisa.”

Vejamos como este aspeto se traduz em termos de reivindicações: embora a discussão sobre reparações se centre, quase sempre, numa dimensão de indemnização e nos valores que seriam justos ou pagáveis, esse não é o objetivo principal daqueles que fazem a defesa das reparações. Por exemplo, Coates usa a palavra “reparações” para significar “aceitação plena da nossa biografia coletiva e das suas consequências”. O mesmo é dizer: o que se pretende é que aceitemos o argumento identitário e a sua ideia de que o mundo se encontra estruturalmente organizado por forma a que os brancos explorem os negros.

Discutir reparações significa, assim, discutir muito mais do que ideias históricas ou cálculos financeiros. Trata-se de discutir algo mais existencial: a forma como vemos o mundo e os pressupostos filosóficos que lhe estão subjacentes.

Desde que Marcelo Rebelo de Sousa introduziu, entre talheres, pratos e copos, o tema das reparações, o debate ficou lançado entre nós e o espaço mediático encheu-se de discussões, mais ou menos acaloradas, sobre a questão. Curiosamente, os contributos filosóficos foram quase inexistentes, mas parece-me que a filosofia pode ajudar não só a explicar os termos da discussão (em particular, a impossibilidade de entendimento), mas também a identificar as consequências dos argumentos que são levantados.

Por forma a compreendermos o que está em causa, façamos o exercício de colocar em confronto os dois lados da questão, designando-os como o lado identitário e o lado liberal, mesmo que correndo o risco de simplificação e generalização. Estas qualificações ajudam-nos a compreender em que sentido os dois lados estão a falar de coisas diferentes e, acima de tudo, a remeter para diferentes noções de tempo.

A perspetiva liberal, no sentido de Liberalismo-filosófico, tem uma visão individualista e fundada nos princípios do Estado de direito e perceciona a história como um momento passado, que devemos respeitar e com o qual devemos aprender, mas que é passado. Este grupo tenderá, assim, a estar recetivo a devoluções de obras de arte ou património se a sua posse for resultado de uma apropriação ilegítima, na medida em que são situações de injustiça que ainda se mantêm e deverão ser corrigidas; mas tenderão a recusar uma reparação pela escravatura por se tratar de um erro passado que já foi corrigido pelo próprio processo de abolição e os indivíduos ofendidos não poderem ser ressarcidos. Por outro lado, os indivíduos presentes não têm uma responsabilidade objetiva por erros do passado e remexer em questões que já foram politicamente resolvidas gera ressentimentos e revoltas que não nos permitem tratar dos problemas presentes.

Por seu turno, uma perspetiva identitária perceciona o mundo através de uma lente que interpreta os acontecimentos históricos como expressão da luta permanente entre opressores e oprimidos, pelo que os erros do passado não são apenas erros do passado, mas refletem o modo como certos grupos exercem poder e supremacia sobre outros. Isto significa que a abolição da escravatura não se traduziu na reposição da justiça ou uma reparação aos escravos – significa apenas que a instituição escravocrata se tornou socialmente insustentável, mas as sociedades de supremacia branca arranjaram novas formas de explorar os negros e enriquecer à sua custa. Nesta medida, é a supremacia branca que deve ser reconhecida e posta em causa; é ela que continua a justificar as desigualdades económicas entre brancos e negros; e é ela que mantém o racismo que seria estrutural nas nossas sociedades. Neste sentido, e parafraseando William Faulkner, o passado não passou: os negros, enquanto grupo identitário, continuam a sofrer em resultado da sua identidade e nenhuma devolução de património, nenhum trabalho conjunto para a reformulação de manuais, nem qualquer medida avulsa contra o racismo pode resolver seriamente o que há de errado na nossa sociedade. Reparar significa reconhecer o privilégio branco e é isso que está verdadeiramente em causa.

Quando os dois lados se confrontam não estão, por isso, a discutir a partir de um terreno comum e é por essa razão que os debates não geram qualquer tipo de acordo ou compromisso (por muito que alguns liberais se esforcem nesse sentido). Os dois lados têm noções distintas do tempo, do que são agentes políticos e do modo como as sociedades funcionam. Deste modo, discutir reparações é, fundamentalmente, um problema filosófico – implica perceber e questionar as ideias metapolíticas que estão em causa.

Por outro lado, a filosofia também nos ajuda a compreender os perigos dos argumentos invocados. É que, embora os liberais possam procurar cedências, compromissos e diálogo, para o lado identitário, não há compromisso possível: a capitulação tem de ser absoluta e nos seus próprios termos. E como tudo é percecionado enquanto relações de poder entre identidades, aceitar o argumento identitário é aceitar que a política será sempre confronto e conflito. Terá o Presidente da República consciência disso?

PS: Fica assim lançado um dos temas para a conferência Fronteiras do Futuro, organizadas pela Paróquia de São Nicolau, em que estarei presente na próxima quinta-feira.



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