Não nos tornamos pais sempre que temos filhos. Nem conseguimos ser sempre tão pais como os nossos filhos precisam que sejamos. Ou como nós próprios imaginamos que somos capazes de ser. E mesmo que, hoje, tenhamos a convicção profunda de estarmos a ser pais duma forma muito próxima daquela com que sempre sonhámos, nada nos garante que, amanhã, consigamos continuar a sê-lo. Porque aquilo que os nossos filhos nos dão ou exigem e aquilo que esperamos deles ou temos para lhes dar sofre sobressaltos. E convulsões. E, até fracturas. Pelo que termos filhos e conseguirmos ser, para sempre, bons pais nem sempre coincide como os nossos desejos. Da mesma forma, também os nossos filhos se podem afastar de tal forma daquilo que esperamos deles que, nalgumas circunstâncias, vão deixando, aos bocadinhos de ser “os nossos” filhos. E entre eles e nós acumulam-se páginas em branco que fazem com que, entre a necessidade do seu amor e o retorno amoroso que nos dão, possam existir muitos episódios que fazem com que, do lado dos pais como do dos filhos, haja uma discrepância entre a família que temos e a família que somos. Imaginar que a família se funda e nunca se enviesa nem se desfaz não coincide com as famílias que todos conhecemos.
Aliás, ao longo da história, família tradicional nem sempre se traduziu numa família feliz, segura ou plena de bons exemplos. Também significou pai e mãe mal amados. Papéis da mulher e do homem inquinados por preconceitos. Pai e mãe presos, tragicamente, um ao outro. Pai e mãe com funções que, muitas vezes, não correspondiam ao que era justo ou eram o seu desejo. Pai e mãe juntos por fora e divorciados por dentro. Pai ou mãe ausentes da vida dos filhos. Pai ou mãe omissos, negligentes ou maltratantes. Pai ou mãe dessincronizados na educação dos filhos. Pai e mãe que iam coabitando, mas mal conviviam e que não eram um casal. Etc. É por isso que a família tradicional, desde o seu início, foi uma necessidade incontornável de sobrevivência (e, mais que isso, se transformou na descoberta do amor), mas foi, também, muitas vezes, quem mais trouxe muitas pessoas até ao sofrimento.
Vista por dentro da vida mental, uma família tradicional existe. Sim. Porque temos um pai e uma mãe. Que nos foram dando inúmeras referências preciosas ao longo do nosso crescimento. E, por isso mesmo, motivos para nos identificarmos a um e a outro. O que faz com que a nossa identidade seja, por isso mesmo, matizada por imagens e referências de ambos os sexos. Sermos iguais por fora a um dos pais nem sempre nos torna, por inerência, parecidos com ele. Já sermos como o pai e como a mãe obriga-nos a multiplicar essas identificações umas nas outras e, em consequência disso, a fazer de todas elas o eixo ou a matriz da nossa identidade. Sermos como um e como o outro, com aquilo que eles nos deram “naquele momento” ao mesmo tempo, traz-nos à singularidade de sermos nós mesmos. Que se vai expandindo e matizando com outras identificações pela vida fora. E vai actualizando expectativas e exigências. Daí que muitas pessoas da nossa família possam ir deixando de o ser. E haja muitas pessoas que, pela preponderância que assumem na nossa vida, se tornem da família.
Só que, muitas vezes, pai e mãe, pelos exemplos que nos foram dando, não desencadeiam identificações paritárias. Às vezes, entre um e outro, há discrepâncias significativas. E isso confunde e magoa. Às vezes, muito do que nos deram é motivo para que, fazendo isso parte de nós, queiramos, sobretudo, não ser como eles. Logo, uma família tradicional, num plano mental, não é um presépio. Às vezes, separa-nos e divide-nos mais do que nos junta como um cimento que dá sentido à nossa vida. Nesses momentos, é, sobretudo, uma referência idealizada. Vista só por esse vértice, família tradicional e família real não coincidem tantas vezes como todos desejaríamos.
Por isso mesmo, nem quando partilhamos a consanguinidade, laços e uma história comum, tudo isso faz com que sejamos sempre uma família. Por mais que todos tenhamos uma ideia precisa do que queremos dela: que seja um lugar de acolhimento e de amparo só nosso; e representa uma rede de pessoas que, porque nos amam, sabem mais de nós do que nós próprios; e um conluio de gestos de empatia e de ternura; e “a reserva” natural da sabedoria; e um sindicato de bondade. Mas há pessoas com quem partilhamos a consanguinidade que, pela forma como nos magoaram, se inabilitam como pessoas da família. E, até, se transformam em estranhos colados a nós. Uma vez mais, se, idealmente, a consanguinidade funda a família tradicional, nem sempre isso é um garante para que seja uma família. E, muito menos, que o seja para sempre.
É por tudo isso que a família é inacreditavelmente mágica, comovente e tão próxima das experiências do sagrado. Mas, pelo tanto que esperamos dela, é tantas (mas tantas) vezes tão frágil. Mas é, também, por tudo isto que a família é uma realidade sempre aberta. Sempre humilde. E em construção. Não se entende que a família seja uma instituição. Não, ela é “só” o nosso oxigénio. Porque dela depende a nossa relação com a vida, com o amor, com os outros ou com a saúde mental. Tal ela é uma matriz única e insubstituível para todos nós! Por tudo isto, nada se substitui à família. Por mais que tudo a complemente. Justamente por isso, dividirmo-nos ente aqueles que são a favor dos valores da família ou “contra” eles é absurdo. E supor que a família, para ser família, tenha de ter um e só formato, ou que é o formato da família que estrutura a sua função não é verdade.
Já no plano social, a “família tradicional” é uma descoberta muito recente na história da Humanidade. Chega-nos, de forma mais estável, com a revolução industrial. E não é estranha a mudanças significativas nas condições de vida das pessoas e à sua escolarização. Que, entretanto, foram evoluindo e que tiveram importantes consequências na dinâmica da família, na relação amorosa dos pais, no vínculo jurídico do casamento, nos papéis do homem e da mulher e na educação das crianças. Vista por este lado, se a matriz da família tradicional não mudou, hoje temos (sem dúvida) as melhores família que a Humanidade já produziu. Muitas mantêm esse formato “tradicional” e, com o tempo, aprenderam a amar-se melhor e a ser melhores famílias. Muitas, por mais que mantenham esse registo “tradicional”, traduzem-se mais em relações formais do que em relações de facto. Muitas são famílias reconstruídas. Muitas são famílias monoparentais. Muitas são famílias homossexuais. Etc. Sendo que todas elas, apesar das dores ou das contingências com que vivem, tentam dar às crianças exemplos para que cresçam com verdade em defesa do valor da família.
Mas isso não “exige” que a existência de um pai e de uma mãe correspondam a um dado perfil da função paterna e da função materna. As funções da mãe e do pai têm vindo a complementar-se de muitas formas diferentes. Comparados com as “famílias tradicionais”, os papéis do pai e da mãe transformaram-se imenso nos últimos 50 anos. E para muito melhor! Matizaram-se. Com ganhos inacreditáveis para o desenvolvimento das crianças e para a riqueza da própria familia. Por mais que nem sempre isso se traduza, para sempre, em competências para sermos bons pais, em todos os momentos…
É verdade que as famílias são, hoje, muito menos “aldeias” do que aquilo que já foram. Porque, no seu dia a dia, são menos alargadas e, infelizmente, se tornam mais nucleares. Mas a família, hoje, é melhor e mais família que a “família tradicional”. É mais justa e mais paritária. É mais presente, mais atenta e mais interventiva. É mais próxima e mais democrática. E é mais cuidadora. O valor da família não depende do seu formato mas da forma como todos contribuímos para que ela seja mais família. E melhor familia. É por isso que a família, hoje, na sua inacreditável diversidade, representa a humildade, a perseverança e a sabedoria que ela tem sabido ter no sentido de se reinventar e ser, incansavelmente, sempre mais viva. Em defesa dos valores da família.
Tem, todavia, a recente polémica em torno da família tradicional uma enorme virtude: colocou a família na agenda. E fez com que nos sentíssemos empenhados a defender o valor da família. Mostrando que a legitimidade para a protegermos é de todos, todos, todos. É isso é bom!