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os casos que ensombram o atletismo do Quénia – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Out 10, 2024

É quase uma espécie de terreno sagrado, daqueles que quando se pisam dão asas a qualquer atleta que tem como única ambição de vida voar até ao lugar mais alto do pódio em grandes competições internacionais. E sim, é mesmo do terreno. Circunscrever o sucesso de quem treina na região do Vale do Rift no Quénia, entre as cidades de Eldoret e Iten no interior do país, é redutor perante uma fábrica que consegue dar resultados a nomes de várias nacionalidades que aproveitam as condições especiais da região para fazerem a preparação para as principais provas. “Fábrica de campeões” é uma frase largas vezes encontrada ao longo dessas cidades, algo que voltou a fazer sentido à luz dos últimos Jogos Olímpicos de Paris e respetivas medalhas.

Apenas entre 800 masculinos e femininos, 1.500 femininos, 3.000 obstáculos masculinos e femininos, 5.000 masculinos e femininos, 10.000 femininos e maratonas masculina e feminina, o Quénia ganhou 11 medalhas na capital francesa (quatro ouros, duas pratas e cinco bronzes). Já tinha feito melhor, subiu em relação ao que se passara em Tóquio, promete ser uma fonte inesgotável de pódios em qualquer edição dos Jogos. No entanto, também tem um outro lado. Menos conhecido, menos mediático, bem mais preocupante. E depois de alguns casos de doping que ensombraram essa “fábrica”, sucedem-se fatalidades de atletas na região.

O ano de 2024 começou com uma notícia que deixou o choque o mundo: Kelvin Kiptum, que apenas em dois anos de atletismo mais a sério conseguiu redefinir os limites humanos na maratona e estabeleceu um novo recorde mundial de 2.00.35 em Chicago tornando-se o primeiro de sempre a baixar a fasquia de 2.01 (superando neste particular o compatriota Eliud Kipchoge), perdeu a vida com apenas 24 anos num acidente de viação. Como escreveu na altura o El País, foi “um talento abençoado pelos deuses mas castigado pelo destino”, visto por alguns com desconfiança pela forma como chegou tão cedo às melhores marcas e por outros como o exemplo de uma conjugação cósmica de fatores saídos da evolução do próprio atletismo, dos ténis ao treino – neste caso com a Nike a reclamar “vitória” face à Adidas. Da morte, sobraram as dúvidas.

Além de Kiptum, o treinador ruandês Garvais Hakizimana também morreu, ao passo que Sharon Kosgey, uma mulher que seguia com ambos na viatura, ficou gravemente ferida. De acordo com as autoridades, o carro que embateu contra uma árvore e ficou destruído não apresentava qualquer problema mecânico. Nos dias seguintes, quatro homens foram detidos no âmbito da investigação. “Recebi a notícia da morte do meu filho enquanto estava a ver as notícias. Fui ao local do acidente mas a polícia já tinha levado o corpo. Antes disse-me que alguém nos ia ajudar a construir uma casa. Disse-me também que o corpo dele estava apto, que conseguia fazer 1:59.00. Algumas pessoas vieram cá a casa há uns tempo à procura dele e não se quiseram identificar. Pedi-lhes identificação mas preferiram sair”, contou o pai ao Citizen Digital.

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As tais quatro pessoas acabaram por ser detidas em Elgeyo Marakwet, onde o atleta nascera, e levadas para Iten para interrogatório. Mais tarde soube-se que os mesmos indivíduos eram empresários da Qiodan, empresa desportiva com quem Kelvin Kiptum tinha assinado um contrato depois de ganhar a maratona de Valência em 2022 por quase 100 mil euros e que viu o dinheiro devolvido pelo atleta após rubricar um outro acordo com a Nike para correr a partir de 2023. Esses representantes deslocaram-se ao país para que o queniano cumprisse o vínculo que fizera com a Qiodan, sem que se soubesse a partir daí se chegou a haver algum encontro entre as partes e se continuam a ser suspeitos de ligação ao acidente de viação.

Mais tarde, em maio, Eliud Kipchoge, segundo mais rápido de sempre na maratona, assumiu em entrevista à BBC África que temia pela vida após receber várias mensagens que especulavam sobre uma alegada ligação à morte de Kiptum. “Fiquei chocado quando vi nas plataformas e redes sociais que estava envolvido no que tinha acontecido ao rapaz. Foi a pior coisa que vi na minha vida. Disseram que me iam queimar no campo de treinos, que iam incendiar os meus investimentos na cidade, que deitavam fogo à minha casa, que iam queimar a minha família. É como o mundo está. Não tenho o poder para ir à polícia e dizer que a minha vida está em perigo, por isso as minhas preocupações estão com a minha família. O pior momento foi quando tentei ligar à minha mãe e ela só me disse ‘Tem cuidado, há muita coisa a passar-se’. Mas ela deu-me coragem, neste momento difícil. Agora nem na minha própria sombra eu confio”, contou o queniano.

Em setembro, Rebecca Cheptegei, que representava o Uganda mas que nascera e vivia no Quénia, foi morta pelo companheiro (que viria a morrer uns dias depois). A atleta de 33 anos, que tinha participado nos Jogos Olímpicos de Paris com a 44.ª posição na maratona, estava a regressar a casa com os dois filhos depois de ter ido à igreja e foi aí que sofreu o ataque de Dickson Ndiema Marangach, que a regou com gasolina e pegou fogo alegadamente pelas “disputas familiares que eram uma constante”. Rebecca Cheptegei, que ficou com queimaduras em 75% do corpo, acabou por não resistir aos ferimentos tal como o agressor. A forma como o crime aconteceu fez recordar tragédias em anos anteriores também envolvendo atletas quenianas.

Em 2021, Agnes Tirop, que tinha sido campeã mundial sénior e júnior de corta-mato e ganhara dois bronzes nos 10.000 de Campeonatos do Mundo (em 2017 e 2019), foi encontrada morta em casa após ter sofrido múltiplos esfaqueamentos no pescoço e no abdómen. O marido terá ligado depois a familiares, a pedir desculpa pelo que acabara de fazer, e colocou-se em fuga, sendo detido pela polícia quando se preparava para fugir do país. Esteve dois anos em prisão preventiva, neste caso negando que tivesse sido o autor do crime, e foi libertado em 2023 sob fiança enquanto não tem início o julgamento do caso. No ano seguinte, Damaris Mutua, atleta nascida no Quénia que representava o Bahrain, foi também encontrada morta num hotel em Kapsabet. A autópsia apontou para um óbito por asfixiamento de uma almofada, com a polícia a procurar um etíope com quem manteria uma relação apesar de a família garantir que era casada.

Agora, como sumariza o El País, o mundo do atletismo queniano volta a estar de luto com o desaparecimento de três atuais e antigos atletas em circunstâncias que causaram bastante impacto no país numa semana.

O primeiro foi Kipyegon Bett. Antigo campeão mundial júnior dos 800 metros com apenas 16 anos (e com a melhor marca de sempre para a idade) e medalha de bronze no Campeonato do Mundo de 2017, teve um controlo positivo a EPO e foi suspenso por quatro anos do atletismo. Com 20 anos e sem nada por onde se agarrar, Bett entrou numa depressão profunda, entregou-se ao alcoolismo e, como explicou a irmã à BBC, não mais conseguiu sair de um processo de autodestruição que terminou no passado domingo, quando morreu no hospital vítima de falha hepática e renal. “Tentei que voltasse ao atletismo, arranjei uma equipa e novos ténis, iríamos colocá-lo num centro de reabilitação mas não teve forças”, resumiu a irmã.

Mais tarde, Samson Kandie, antigo atleta de 53 anos que ganhou as maratonas de Viena (2004) e Sapporo (2002) depois de ter sido terceiro classificado em anos consecutivos na mediática maratona de Berlim, foi encontrado morto em casa após não conseguir resistir aos ferimentos causados por ladrões num assalto à sua residência. Segundo fontes policiais citadas pelo The Star, os indivíduos estariam à espera que Kandie chegasse a casa para fazerem o ataque, levando no final apenas o telefone da vítima. Existem também informações que dão conta de uma chamada telefónica para a mulher onde era indicado o local correto onde se encontrava, tendo morrido a caminho do hospital após ser assistido em estado crítico.

Menos de 24 horas depois, as autoridades policiais do Quénia deram conta também da morte de Clement Kemboi, atleta de 32 anos que tinha no currículo uma medalha de ouro nos 3.000 metros obstáculos do Campeonato de África de 2015. Não foram revelados pormenores sobre o óbito, com o corpo a ser encontrado junto a uma árvore no pátio de uma escola, depois de a família ter denunciado o desaparecimento alguns dias antes. As três mortes nos últimos dias, todas de antigos atletas e na mesma região, fizeram com que várias vozes se levantassem pedindo maior proteção e apoio na zona para evitar finais trágicos.





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