Só cinco meses depois de Maria Valentina Pereira Lopes — M.V.P.L., como na pulseira — ter aparecido morta naquele barracão, é que a PJ percebeu que andava um assassino em série à solta nas ruas de Lisboa. Tudo porque no dia 2 de janeiro de 1993, também num barracão devoluto, mas dessa vez em pleno centro da capital, junto à estação de comboios de Entrecampos, foi encontrado outro corpo, de outra mulher baixa e franzina, com os mesmos sinais de violência.
Maria Fernanda Matos tinha 24 anos e, tal como Maria Valentina Pereira Lopes, de 22, também era prostituta. Tal como a primeira vítima, também ela foi assassinada durante a noite, ao que tudo indicava, por um pretenso cliente.
Valentina morreu graças a “graves lesões abdominais, juntamente com asfixia”. O relatório da autópsia de Fernanda, assinado igualmente pela médica legista Isabel Pinto Ribeiro, revelou um fim ainda mais violento: “Fratura de crânio com contusão do encéfalo, associado a feridas corto-perfurantes torácicas e abdominais, produzidas por instrumento de natureza contundente e corto-perfurante.”
A cerca de metro e meio do cadáver, no chão, pode ler-se no volumoso processo de investigação aos homicídios, que o Observador consultou, a PJ encontrou ainda parte dos órgãos vitais de Fernanda — “os intestinos, o fígado, o baço cortado em dois e o estômago”.
Tal como no caso de Valentina, também no de Fernanda se percebeu rapidamente: antes de fugir, o assassino tinha levado com ele parte considerável dos intestinos da vítima, presumivelmente “como troféu”. Nem a médica legista nem os agentes responsáveis pela investigação tinham qualquer dúvida: o assassino era só um e tinha de ser um psicopata. Pior do que isso: estava a evoluir.
Maria Valentina vivia no bairro da Quinta da Quintinha, na Póvoa de Santo Adrião, com os pais, três sobrinhos, ainda menores, e quatro irmãos. No total, tinha oito; metade rapazes, metade raparigas, uma delas sua gémea. Quando morreu, pode ler-se no processo arquivado no DIAP de Lisboa, só um dos irmãos, então com 21 anos, não tinha “antecedentes criminais” — sendo que dois deles estavam nesse momento a cumprir pena, um em Pinheiro da Cruz, outro em Sintra.
A própria Valentina, apesar de não ter cadastro, tinha tido um percurso de vida muito pouco ortodoxo, apurou a PJ, em entrevistas com vários familiares. Desistiu da escola no primeiro ano do ciclo preparatório, altura em que começou a fumar haxixe, e aos 13 anos evoluiu para drogas mais pesadas. À data da morte, “injetava cerca de 15 a 18 contos de heroína por dia”, explicou um dos irmãos à polícia. Era por isso que, há anos, se prostituía, acrescentou ainda.
Maria Fernanda, que morava com o companheiro e dois filhos pequenos num quarto de pensão na Rua das Gaivotas, junto ao Largo do Conde Barão, em Lisboa, não era toxicodependente. O que não significa que não tivesse também um vício: acontecesse o que acontecesse, todas as noites ia jogar bingo. E, não raras vezes, perdia todo o dinheiro que apostava.
Foi o que aconteceu na noite em que foi assassinada, a 1 de janeiro de 1993, estava ainda a recuperar de uma cesariana, tinha o filho mais novo apenas um mês e a mais velha, uma menina, 6 anos de idade.
Se, naquela noite, Fernanda saiu para trabalhar — contou à PJ uma amiga e companheira de prostituição —, foi porque precisava mesmo de dinheiro para pagar o quarto na pensão. Era o primeiro dia do ano, a cidade estava na ressaca do réveillon, e o mais certo era que nem aparecessem muitos clientes. Mas o companheiro estava sem trabalho, há semanas que não arranjava biscates na construção e, quando assim era, as despesas da família cabiam-lhe a ela. Por isso mesmo, Fernanda saiu e Carlos ficou na pensão, com as crianças.
Problema: depois de já ter conseguido dois clientes, em vez de voltar para casa, Fernanda apanhou um táxi para a Avenida de Roma e perdeu tudo no jogo. De madrugada, quando o salão de bingo fechou, tomou a pior decisão de todas e regressou à zona de Entrecampos, para tentar recuperar algum dinheiro. O resto da história já é conhecida: seria encontrada horas depois violentamente assassinada.