O endereço oficial da Assembleia da República fica na Praça da Constituição de 1976, em Lisboa — mas, como percebemos esta semana, o endereço poderia ficar na galáxia de Andrómeda e o efeito prático seria o mesmo. Os deputados que na quarta-feira fizeram perguntas no Parlamento à procuradora-geral da República mostraram, de forma involuntária, que vivem num planeta só deles. Ouvindo-os com atenção, concluímos facilmente que as preocupações de política criminal dos deputados começam e acabam no perímetro que é ocupado por políticos.
Basta pegar num papel e num lápis e fazer as contas. Nas perguntas feitas a Lucília Gago, o assunto com mais referências — 20 — foram, claro, as violações do segredo de justiça. É uma preocupação exótica. Por um lado, porque a violação do segredo de justiça é um crime de reduzida importância (não sou eu quem o diz, é o Código Penal). Por outro lado, porque a colocação de um determinado inquérito em segredo de justiça passou a ser uma situação excepcional, tendo em conta que a lei determina que a regra seja a da publicidade. Além de tudo isto, que já é muito, sobra uma constatação evidente: a violação do segredo de justiça que preocupa os deputados não é aquela que coloca nos jornais informação detalhada sobre o homem que matou o afilhado do tio da vizinha do 2.º esquerdo, mas apenas a violação do segredo de justiça que causa embaraços a um ministro, a um presidente de câmara ou a um membro da comissão política de um dos grandes partidos.
Além do segredo de justiça, os deputados estavam muito apoquentados com o uso de escutas telefónicas em investigações — falaram 14 vezes sobre esse apocalíptico problema. Naturalmente, aquilo que, segundo eles, ameaça a unidade da pátria não é a “invasão de privacidade” feita a dois traficantes de droga que estejam a combinar um negócio criminoso na Beira Alta, mas a “invasão de privacidade” feita a um secretário de Estado ou a um autarca.
Logo a seguir na curtíssima lista de preocupações dos deputados estava a recente entrevista de Lucília Gago à RTP, que foi referida, de forma crítica, dez vezes. É um tema que, como se vê, entusiasma e mobiliza políticos, mas que não se enquadra propriamente naquilo a que repetidas vezes nos referimos como uma “reforma da Justiça”.
Esgotadas estas mortificantes temáticas, os deputados mostraram ainda o seu transtorno com a duração excessiva dos inquéritos — teriam seguramente na cabeça o processo que envolve António Costa, não qualquer outro que tenha como objeto um furto a uma farmácia ou a um minimercado — e a realização de buscas, como é evidente, com especial e arrebatador ênfase naquelas que foram presenciadas por jornalistas.
A rajada de perguntas dos deputados partiu sempre de um pressuposto unânime: segundo eles, o Ministério Público é a organização com pior reputação do país, ficando, talvez, apenas atrás da EMEL. João Almeida, do CDS, bradou que “a confiança na Justiça está longe de ser a desejável”. Inês Sousa Real, do PAN, vociferou que “o país não pode continuar a ter esta má imagem da Justiça”. E Paulo Muacho, do Livre, ironizou que “não será certamente novidade nenhuma se disser que a percepção que os portugueses têm da Justiça e em especial do Ministério Público não é positiva” porque “todos os estudos de opinião que vão saindo com alguma frequência o demonstram”. Na verdade, alguns desses estudos de opinião “demonstram” uma coisa substancialmente diferente e relativamente embaraçosa para João Almeida, para Inês Sousa Real e para Paulo Muacho. Por caridade cristã, basta apresentar um exemplo: muito recentemente, em julho, um estudo da OCDE concluía, imagine-se, que a confiança dos portugueses na Justiça é mais elevada do que no Governo e, Deus nos ajude, no Parlamento. Aliás, não é apenas mais elevada, é muito mais elevada: uns robustos 50% dizem acreditar na Justiça, enquanto apenas uns magérrimos 30% afirmam o mesmo quando lhes perguntam pelos ministros e pelos deputados.
Lucília Gago deve ter ficado razoavelmente perplexa com esta sessão no Parlamento porque, ao contrário do que pode ter parecido a quem assistiu àquele exercício, o Ministério Público não passa os seus dias a investigar políticos. Aliás, para saberem disso, os deputados só precisariam de ter dedicado alguns minutos desta semana a ler, por exemplo, o Correio da Manhã.
Na segunda-feira, foi noticiado que um homem que responde pela sugestiva alcunha de Sandokan pegou numa pistola de calibre 6.35 mm e tentou assassinar o dono e o segurança do bar “Pérola Antiga”, no Porto, porque naquele renomado estabelecimento trabalhava uma mulher que ele, aparentemente, conhecia. Fez cinco disparos de um carro em andamento falhando os alvos e, depois, ter-se-á dirigido para o bar Granada Club, presume-se que para descontrair, e aí foi preso. Também nesse dia, soube-se que um outro homem foi detido junto a uma escola de Vila Nova de Famalicão depois de ter sido libertado apesar de acusações de ter abusado de alunas. Um grupo que usava “carros de luxo em furtos a moradias” foi apanhado no Minho; dois homens assaltaram uma bomba de gasolina em Gaia; uma menor e uma mulher foram esfaqueadas em Gondomar por suspeitos diferentes (num caso um homem, no outro duas mulheres); e foi detido em Loures um homem por tráfico de droga.
Na terça-feira percebeu-se, também pelo Correio da Manhã, que o segurança de uma casa de alterne em Monção foi assassinado a tiro por não ter deixado entrar um cliente. Em Palmela, foi detido um condutor que atropelou um casal; em Viana do Castelo foi apanhado um assaltante; e em Braga a polícia levou um homem que desrespeitou uma medida de coação que decretara o afastamento da mãe. Foi detido um traficante no Porto Santo, outro na Pasteleira, dois em Paços de Ferreira e vários nos Açores
Na quarta-feira, dia da audição de Lucília Gago no Parlamento, foi publicada no Correio da Manhã a notícia de que um taxista matou um universitário em Lisboa e “fugiu a alta velocidade”. Houve mais: um homem foi esfaqueado no Porto. E mais isto: um cadáver apareceu no Meco.
O norte-americano Frank Rizzo, que começou como polícia e acabou como político, disse um dia uma frase que ficou célebre: “Um progressista é apenas um conservador que ainda não foi assaltado”. Depois de assistir à umbiguista prestação dos vários partidos na audição da procuradora-geral da República, e não desejando nenhum mal aos representantes da nação, uma pessoa convence-se de que um deputado é apenas um leitor do Correio da Manhã que ainda não foi assaltado.