No romance, a narradora está de cama, doente. Febril, as memórias do que viveu mexem-se, remexem-na por dentro, apresentando-se o redemoinho que aí vem, embora numa prosa depurada, elegante, incisiva – totalmente ao osso. É uma maravilha de se ler. Estruturado em quatro capítulos, o romance conta quatro histórias, debruçando-se sobre quatro personagens, cada uma impactante – e todas diferentes. De início, parece natural acreditar-se que o romance irá focar-se na figura potente de Johanna, mas, chegado ao segundo capítulo, depressa o leitor entende que a capacidade de narrar da autora é singular, e que o romance tem mais para dar, e com igual contundência.
A memória, sempre associada a pessoas marcantes, aparece como traço que forma, e gente com impacto fica a arder a vida inteira. Aqui, o conjunto pega em tudo: há um amor que parece totalizante, uma amizade que tem, desde o início, prazo de validade, uma atracção física que domina a cabeça, uma ansiedade a consumir uma mulher inteira. Como cada uma dá uma vida diferente – mais uma no meio de tantas –, cada uma tem o seu traço indelével, e a autora pega nelas como forças estruturantes das décadas que viveu. Ao invés de um relato aparentemente linear, a vida parece transformar-se em pequenas narrativas, o que acaba por ser surpreendente para o leitor, que julgará que Johanna, a ex-namorada da narradora, com quem o romance inicia, será a força centrípeta do romance.
Ao mesmo tempo, como em muitos momentos as histórias narradas parecem ter a força do futuro, é difícil ler-se o que ali está sem nostalgia. A ideia de um amor terminado, para mais abruptamente, fere, e ainda por cima pode ferir a vida inteira. Narrado sem peneiras ou gorduras, com emoção depurada, a ideia do abandono parece trágica, parece não deixar nada por vir. E, com isso, parece que a ideia da perda preenche cada espaço, cada momento, cada átomo de energia. Isto acontece principalmente com a história de amor com Johanna, mas, ao longo de todo o livro, há a sensação de que a efemeridade arranca mais do que o que deixa – ou então que deixa pó capaz de turvar tudo.
Título: “Os detalhes”
Autora: Ia Genberg
Editora: D. Quixote
Tradução: João Reis
No meio deste olhar para o passado, não se percebe bem de que se faz o presente. O embate com o passado é tal que é fácil julgar-se que o presente não a preenche como o passado o fez outrora. Sabe-se que a narradora é mãe, mas intui-se que não tenha uma relação amorosa, embora esta seja uma suposição que não se alicerça em texto. E, neste limbo, chega a ser difícil pesar-se as perdas, uma vez que não se sabe se houve substituição para o que lá foi. Ainda assim, como a prosa se volta para a perda, é a perda que o leitor vê, por isso, mesmo que houvesse um quadro familiar completo, o texto, ao voltar-se para a ferida, continuaria a mostrá-la aberta.
Numa espécie de ode ao passado, também sabe a traição imperdoável que o outro lado não a faça. Johanna, tornando-se figura pública, aparece na comunicação social, e, para a narradora, é intolerável vê-la dizer que não gosta, nunca gostou, de Paul Auster, quando Auster era uma coisa das duas. O espaço público que ocupou fá-la durar no espaço íntimo que ocupa anos depois. De resto, há Niki, a colega de casa que desapareceu do nada; Alejandro, músico com quem a narradora teve um caso, embora breve, e que entra de rompante e de rompante sai; e Birgitte, domada pela ansiedade. A nostalgia que deixam também se prende com o tempo: uma vez desaparecido, qualquer um podia nunca mais ser encontrado, e isto num tempo em que não havia redes sociais ou telemóveis.
Num romance curto, Genberg parece enfrentar a vida inteira, mexendo em tudo o que toca. Há amores completos, que dão tudo, que são tudo – que transformam o eu em nós –, e com isso há quebras que são destruições. Há vidas para entreter, relações condenadas ao fracasso, tudo numa mescla que culmina numa vida que não é apenas uma história. O distanciamento temporal pouco vale como matéria de distanciamento emocional. Pelo contrário, enquanto se lê o que se era, lê-se o que podia ter continuado a ter sido, e vê-se o mal concluído como brecha aberta para a emoção inicial. Alejandro, por exemplo, deixou mais do que a sua memória, mas é a história por concluir que o deixa, enquanto pessoa, a existir em lembranças, quase como quem espera o final de um episódio. De Johanna, recorda-se o amor completo, e a própria da tortura da recordação – essa que se vai repetindo e que não pode ser evitada.
Além de tudo isto, há uma reflexão quase minuciosa sobre as relações, aqui traçadas a bisturi e passadas a raio-x. São reflexões que já têm anos de maturação, daí que saibam já a coisa estruturada. Johanna será a personagem mais forte, uma vez que se sabe, a priori, que do céu foi tudo ao charco. E, sabendo-o, há partes que, de tão imbuídas de amor e esperança, se tornam trágicas:
Ela era a minha vida principal. A minha vida era a Johanna, as nossas conversas, o sítio que partilhávamos no mundo. Nunca mais teria tanta certeza de ninguém, tanta certeza de que tinha, de verdade, alguém. Nem anos mais tarde, quando vi pela primeira vez os olhos escuros da minha filha recém-nascida, senti tanta certeza de que tinha alguém.” (p. 24)
“O passado nunca me deixava em paz” (p. 27), acaba por escrever a narradora, referindo-se a esses tempos. Anos depois, a sentença continua a fazer-se durar, e parece que o passado iguala sempre o presente em valor, num nivelamento da vida que parece não fazer da proximidade temporal uma relação hierárquica com as vidas mais distantes. Assim, é impossível criar-se a distância. E, em momentos de febre, a vida fica a arder toda ao mesmo tempo.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.