As tradições marcam a passagem do tempo. Chegados à época de Natal, estamos também num momento de balanço do ano literário. Foi um ano farto, com imensos lançamentos bons, tanto em Portugal, como no estrangeiro. De forma inexplicável, algumas obras essenciais continuam sem chegar a Portugal. As editoras continuam apostadas em publicar diferentes declinações do mesmo livro de um autor da casa. Aqui deixo a minha lista, se acaso fizer proveito a alguém. Como sempre, o critério é única e simplesmente o prazer.
Todos os anos, a não-ficção publicada nos Estados Unidos dá-me, pelo menos, uma grande alegria. Este ano foi a vez do livro de Becca Rothfeld. Um pequeno génio, suspendeu o doutoramento em Filosofia em Harvard para continuar a escrever sobre livros. Rothfeld tem uma coluna semanal no Washington Post onde escreve sobre não ficção. No lançamento do livro, na Politics & Prose, Rothfeld clamou contra a proliferação de livros de autoficção feitos de pequenos fragmentos perdidos numa grande página em branco contendo supostas reflexões profundas que não são mais do que banalidades. Como dizia o outro, vocês sabem daquilo que eu estou a falar.
Nos últimos dois anos, António Araújo brindou-nos no Diário de Notícias com uma coluna semanal chamada Prova de Vida na qual, sob a pretensa recordação de figuras que compuseram o imaginário do país desde o 25 de Abril, traçou um retrato inclemente daquilo que vulgarmente podemos chamar de Portugalidade. Capaz de ir do erudito ao popular no mesmo parágrafo, Araújo demonstra um olhar mordaz e perspicaz, juntamente, claro, com o seu conhecimento enciclopédico de livros, revistas e jornais. Com retratos de figuras como Futre, Tomás Taveira, José Cid, Zéze Camarinha e o inequescível Baptista da Silva, que nos alegrou um Natal há mais de dez anos, para quem o souber ler, este livro diz mais sobre o país que somos do que muitos tratados sociólogicos.
A indústria académica e jornalística sobre o Holocausto daria para preencher várias vidas de leitura. Neste livro, Tobias Buck acompanha, em Hamburgo, o julgamento de Bruno Dey. No estertor da Segunda Guerra Mundial, Dey era pouco mais do que um míudo cujo principal tarefa consistia em ser vigia nas torres do campo de concentração de Stutthof. Para além das perguntas clássicas sobre a culpa colectiva na Alemanha, o livro apresenta uma reflexão fascinante sobre o que significativa ser Alemão em 2024. Partindo da experiência da filha de Dey, que se apresenta em tribunal de niqab, depois de uma conversão ao Islão através do casamento, Buck questiona-se sobre como acomodar a ideia da culpa como pedra angular da identidade de um país numa sociedade multicultural. Se para ser Alemão é preciso assumir a culpa, poderão alguma vez os imigrantes sentirem-se totalmente integrados ou terão de ser eternamente o outro na Alemanha?
Em 1971, a edição fonográfica viveu uma revolução. Nesse ano foram editadas obras fundadoras daquilo que hoje poderíamos considerar a música urbana em Portugal. Álbuns que adquiririam um estatuto mítico, como Cantigas do Maio, de Zeca Afonso, Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco e Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho, foram todos editadas no mesmo ano glorioso. Este livro compila e expande um conjunto de 12 textos publicados originalmente no Observador. Com um conhecimento eniclopédico da matéria e detalhas deliciosamente nerds sobre quem fez o quê para que álbuns que foram verdadeiros acontecimentos vissem a luz do dia, adorei ler este livro de Freitas Branco.
Na “Quadrilha”, poema de Drummond de Andrade publicado em 1930, havia uma descrição maravilhosa sobre relações amorosas: “João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém”. Este livro de Tobias Carvalho, passado na cena gay de Porto Alegre, no Brasil, relata a história de Artur, que, para além de livreiro, trabalha como drag queen enquanto tem uma relação estável com Caíque. A narrativa gira em torno de traições e desejo, atravessadas por diferenças de classe e raciais numa país muito desigual. Carvalho tem uma estreia fulgurante com este romance que se insere no canône da literatura gay.