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Os nossos 27 discos favoritos de 2024 (e 6 canções que marcaram o ano) – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Dez 24, 2024

A contaminação constante e cada vez mais instintiva entre géneros, linguagens e técnicas; a pop latina e o hip hop a recusar regras, limites e preconceitos, alargando o campo de ação no qual podem transformar detalhes inesperados em motores criativos; artistas a solo que não têm horários nem restrições, a suplantar o papel que as bandas já tiverem no circuito mainstream; o experimentalismo a estimular o encanto junto daqueles que nunca pensaram dedicar tanto tempo a tamanha ausência de gravidade; a eletrónica a ser tão expansiva quanto clássica na vontade que sempre teve de juntar corpos e de os libertar; e um teimoso melancólico das guitarras no meio de tudo isto: eis o legado de 2024 para aqueles que habitualmente escrevem sobre música no Observador.

Great Doubt
Astrid Sonne
(Escho)

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Erika de Casier, ML Buch e Astrid Sonne são dinamarquesas e nos últimos anos têm criado uma boa onda na balada pop, cada uma satisfazendo-se com o seu género musical preferido. Great Doubt é o álbum adulto de Sonne, no qual as canções estão suspensas na ideia da insatisfação de crescer. Mas esta não é música de uma adolescente a entrar na idade adulta, é antes a obra de uma adulta a viver as ansiedades dos 30 e a trabalhá-las com uma secura e uma indiferença fascinantes. Esta mesma indiferença importa, porque transparece uma falta de controlo geracional que é transversal no mundo ocidental. É essa falta de controlo que nos embala em constância neste belo encontro entre soul, dreampop, ambient, música contemporânea e uma folk que ainda estava para ser criada.

Suspiro
Maria Reis
(Cafetra)

Os álbuns de Maria Reis não têm segredos. É sobre ela e as suas relações (amorosas, familiares ou de amizade). E não há códigos: quem está lá, sabe que está lá, não precisa de conspirar. Sempre foi assim. E vale a pena repetir esta ideia, não por ingenuidade ou perseverança, mas porque é um sinal constante de independência. Todos dizemos que somos independentes, todos gostamos de ser independentes, mas a verdade é que a maior parte de nós se dobra à primeira oportunidade: seja por estabilidade, para agradar ou por mil e uma questões que encaramos como “exigências”. A independência de Maria Reis é verdadeira. Porque cresce sem a necessidade de evoluir para satisfazer as narrativas de uma indústria. Evolui, ou melhor, descobre outros caminhos, pelas vicissitudes – boas e más – dessa independência. Que continue assim, a ser a melhor escritora de canções em Portugal. Suspiro é o melhor álbum de Maria Reis porque não há outra possibilidade. Até agora, ela só tem feito sempre melhor.

Evil Does Not Exist
Eiko Ishibashi
(Drag City)

A banda-sonora de Eiko Ishibashi para o filme homónimo de Ryûsuke Hamaguchi (Drive My Car) é uma experiência sonora que nos faz perder a noção de tudo. Em parte, pela forma como brinca com estilos. Tanto soa a jazz como a folk, como depressa se perde nos enredos de ideia de banda-sonora. A ideia é anular qualquer noção de estabilidade – e até apagar a ideia de banda-sonora – e avançar de uma ponta à outra com a sensação contínua de que há aqui qualquer coisa de teste (daqueles de laboratório). Recompensa se insistirmos, não no “repeat”, mas em continuar o teste, ouvir o álbum de uma ponta à outra: se não se gostar de um apontamento, é prosseguir para ser recompensado. É música que não nos penaliza, que nos torna melhores ouvintes, mais exigentes. Com o que ouvimos e com quem somos. É bom parar de vez em quando e só ouvir um disco. Este pede tal dedicação.

Spectral Evolution
Rafael Toral
(Moikai)

Os discos de guitarra de Rafael Toral sempre foram muito especiais, acolheram a teoria de música ambient com uma linguagem própria e um percurso que não é ascendente, mas de procura e fascínio por algo novo. Só que ali no início dos 2000s, Toral decidiu parar com a guitarra e dedicar-se ao projecto Space, que teve várias formas e formações. Spectral Evolution marca o regresso à guitarra, um que absorveu a paragem e uma série de liberdades que o músico aprendeu com Space. É um álbum de guitarra tanto quanto é um de jazz e tanto quanto é um de ambient ou tanto quanto é um sobre o que ouvimos, se pararmos e escutarmos. Parte do fascínio que Spectral Evolution cria tem a ver com as frequências que usa, a maior fatia é a tal liberdade, a sensação de que a música é livre e soa àquilo que quisermos naquele momento (ou às nossas memórias e relação com a música). Por isso, pode ser um álbum que transmite calma ou pode ser muito desestabilizador. Depende de nós. Depende de como o ouvimos.

Moon Set, Moon Rise
Salenta + Topu
(Futura Resistenza)

Batota, este não é um álbum de 2024, mas de 2021, quando saiu originalmente em cassete. Contudo, só o descobri este ano, a propósito de uma reedição em vinil. E fiquei imediatamente maravilhado pela forma como as notas de piano transparecem algo de fantasmagórico que vai para lá do mero filtro da nostalgia. É daqueles raros casos em que a economia – de várias coisas – faz subir a sensibilidade e convida a que ela se prolongue por tempos indeterminados, seja ele o tempo da canção ou o tempo que demora a voltar a ouvir essa mesma canção. Tudo o que se ouve aqui parece muito espontâneo, honesto e poético-mágico.

UMA CANÇÃO DE 2024: “slob air”, Mica Levi

Seja como artista pop (Micachu & The Shapes), compositora de bandas-sonoras (Under The Skin, Monos, A Zona de Interesse, entre muitos outros) ou produtora/colaboradora na música dos amigos (sobretudo amigos, Tirzah, Coby Sey), Mica Levi entrega uma visão desafiante ao mundo do que “aquilo” deve ser. Por “aquilo” considere-se o momento, o objeto, o que está a ser feito. Volta e meia, Mica Levi também faz música em nome próprio, não no sentido convencional, mas de exportação de material, de ideias que explorou e que precisa de sedimentar de alguma forma. slob air é uma canção de 12:28 minutos (e tem mais cinco se for ouvida na versão em vinil) em que experimenta diferentes harmonias da música pop, de ontem, hoje e sempre.

É uma espécie de mash-up contínuo de ideias que, por vezes, engana a sugerir que vai para outro lado, mas nunca, nunca, nunca se concretiza. É uma canção que se pode ouvir durante manhãs, dias inteiros, sem que em momento algum pareça que se esgota. E está lá tudo o que Mica Levi é: a brilhante mente pop, a sensibilidade de quem teve uma formação clássica e a vontade de abrir as cortinas do futuro. slob air é uma luz constante que está num lado qualquer em que temos de estar. É essa ideia permanente de querermos estar lá e de não estarmos lá – ou de a música não nos levar exatamente lá – que torna a experiência de ouvi-la maravilhosa.

Brat
Charli XCX
(Atlantic)

Por culpa da própria Charli XCX, passou-se um verão a discutir o que é “brat” enquanto nomenclatura, os seus usos políticos e a enxurrada de memes que se seguiram ao lançamento do álbum, deixando a música em segundo plano. Faria particular sentido se não houvesse nada por trás da campanha gigante de marketing, mas há — canções que dão vontade de dançar a um tipo que não só não gosta de fazê-lo, como chega a ter horror. Cristalização perfeita do nosso tempo, o sexto longa-duração da cantora e compositora britânica finalmente elevou-a ao patamar máximo da pop à boleia de uma destilação alquímica de escapismo e vulnerabilidade descarnada, de como certas máscaras que colocamos deixam revelar mais sobre nós do que andando de cara destapada.

I Got Heaven
Mannequin Pussy
(Epitaph)

Não é preciso ser uma pessoa particularmente atenta para saber que a raiva está no ar, de que a postura automática mais comum ao sair de casa é andar de punhos cerrados e cara trancada. 2024 foi pródigo em discos capazes de traduzir esse sentimento em música, mas I Got Heaven destacou-se dos demais. A capacidade composicional já estava em Patience, o álbum anterior, mas aqui a banda aliou a sua já conhecida fúria punk a mais candura e contemplação próprias da dream pop e do rock alternativo dos anos 90 — um gesto próximo daqueles que os Turnstile fizeram. O resultado é um conjunto de canções que dá vontade de esmurrar alguém e ir chorar a seguir (e vice-versa).

O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua
João Maia Ferreira
(Sony Music)

“A gente mesmo vai mover que nem Drácula, sem balaclava, com a cara às claras”, profere João Maia Ferreira em Gárgulas, single de avanço de O Lobo Um Dia Irá Comer A Lua e que serviu de espécie de cartão de visita à nova vida artística do homem antes conhecido como Benji Price. Sem abandonar o hip-hop, o rapper e produtor abraçou outras tonalidades, em particular o R&B e a funk solarenga, e dando largas à veia pop que tinha ocultada até então. O resultado é um conjunto de faixas tão orelhudas quanto provas de um amadurecimento notório.

Manning Fireworks
MJ Lenderman
(Anti-)

Há álbuns que só dão o clique em momentos específicos. A uma primeira audição, Manning Fireworks pode entrar por um ouvido e sair pelo outro, com apenas alguns apontamentos de guitarra a reter, uma risadinha cúmplice pelo prazer de ouvir cowbell numa música em 2024. Para mim, foi necessária uma viagem de carro entre Castelo Branco e Portalegre, a coisa mais próxima que temos de uma paisagem estereotipicamente americana, para desbloquear as suas qualidades. Country rock com atitude indie ou indie rock com coração country? Não interessa, quando encaixa, torna-se num conjunto de hinos desajeitados, canções cuja especificidade de pormenores nas letras inscreve-se na melhor tradição da passagem do particular para o universal, e com riffs que insidiosamente acabam por deixar-se ficar sem pedir licença.

Absolute Elsewhere
Blood Incantation
(Century Media)

É raro ver-se álbuns assim neste tipo de listas de final de ano, a não ser em ocasiões extraordinárias. Absolute Elsewhere é caso para isso. O flirt entre o death metal, o jazz e a música progressiva nesses interstícios não só não é de agora como já trouxe muitos frutos ao mundo — os Atheist e os Cynic que o digam. No entanto, a forma como os Blood Incantation se têm imposto para lá dos trâmites do universo contido do metal parece simultaneamente uma continuação desse legado e o trilhar de novos caminhos — muito ao jeito das temáticas cósmicas que dominam a sua música. Dois temas — The Stargate e The Message —, divididos em várias partes, encadeiam selvajaria sónica e gutural com passagens etéreas dominadas por sintetizadores que não destoariam de um álbum dos Tangerine Dream — de resto, Thorsten Quaeschning, atual líder do seminal conjunto alemão, dá aqui uma perninha — e solos que fariam David Gilmour corar de inveja.

UMA CANÇÃO DE 2024: “Angel Of My Dreams”, JADE

Haverá, certamente, melhores canções por onde escolher, findado o ano, mas apenas uma fez-me pivotar o corpo em 180º graus, alimentado a surpresa e euforia, quando a ouvi pela primeira vez e gritei “o que é isto?!” O nome de Jade Thirlwall talvez diga pouco à maioria do público português, já que fazia parte da girl group britânica Little Mix — de enorme sucesso no Reino Unido, mas um produto sobretudo para consumo interno.

Após o hiato do projeto, a cantora fez o que se deve quando se quer arriscar em nome próprio: lançar um single completamente esquizofrénico, entre a balada triunfante e a hyperpop de pupila dilatada às 4 da manhã, fruto de uma temática sobre os altos e baixos da vida enquanto mulher feita mercadoria numa indústria musical impiedosa. Talvez o facto da junção resultar tão bem diga muito da nossa capacidade de atenção completamente dilacerada. Ou talvez seja apenas porque é uma enorme canção.

Night Reign
Arooj Aftab
(Verve)

Se Vulture Prince (2022) já era um álbum majestoso, de tal forma que arrecadou o primeiro Grammy atribuído a uma mulher paquistanesa, Night Reign não lhe fica atrás. Pelo contrário. Um parece a continuação do outro, manifestando-se a música, em Arooj Aftab, como o natural desenrolar da vida. Nas suas composições, entre o jazz nova-iorquino e as influências sufi, não há pressa e isso é profundamente libertador. Às repetições rítmicas dos instrumentais, subtis nas suas variações, acresce a voz arrastada de Aftab, um sopro de outros mundos e de outros tempos, cheio de carinho e de arranhões. O ponto alto de Night Reign é a sublime versão de Autumn Leaves. Quando a acabamos de escutar, quase juraríamos que foi aquela melodia de trompete que compôs Chet Baker e não o inverso, e que, em 2024, essa mesma melodia escolheu Arooj Aftab para se voltar a manifestar.

Prelude to Ecstasy
The Last Dinner Party
(The Last Dinner Party)

Era uma das estreias discográficas mais aguardas do ano. Depois de terem conquistado o BRITs Rising Star, no final de 2023, Abigail, Lizzie, Emily, Georgia e Aurora apresentaram em fevereiro Prelude to Ecstasy, álbum que rapidamente quebrou recordes de vendas nos tops britânicos. O entusiasmo justifica-se em pleno: através de uma sucessão de temas de pop barroco, próxima de Queen, Kate Bush ou ABBA, as The Last Dinner Party não se pouparam nos excessos, apresentando-se simultaneamente arrojadas e sensíveis. Isso é palpável em temas como The Feminine Urge, hino que nasceu para curar as feridas das nossas mães, ou Gjuha, um rezo ortodoxo que remete para as raízes albanesas de Aurora. Entre coros, solos de guitarra, teclados irrequietos, ensembles de cordas e muito drama, Prelude to Ecstasy é um banquete farto, que ganhou direito a uma curta-metragem e a uma edição especial com versões, de onde se retira uma versão de Wicked Games deliciosa de saborear.

Miguela
Silly
(Silly)

Silly, nome artístico de Maria Bentes, conheceu Fred em 2022 e juntou-se ao produtor para gravar apenas um tema, Água Doce. Mas o entendimento entre os dois foi tão perfeito que não mais se separaram até as 15 faixas de Miguela estarem prontas. O álbum de estreia de Silly surpreende pela maturidade da escrita da cantautora de 26 anos, pela forma delicada e segura como se expõe num registo entre a pop, o rock, o rap e a eletrónica e pelo domínio da tensão entre a palavra e o silêncio. Fred, dotado de uma sensibilidade de planta, permeável ao mais ínfimo movimento dos elementos, transporta Miguela para um plano extraterreno, onde, passada a tormenta, a harmonia é alcançada pela força do amor. “Olha O Que O Amor Dá / Nunca se Acaba / Infinito é tudo o que há cá”.

Baño Maria
Ca7triel & Paco Amoroso
(5020)

Catriel Guerreiro e Ulises Guerriero são dois amigos que se conhecem desde a primária. Aos 31 anos, parecem conservar os traços de carácter de dois chavales de Buenos Aires para quem a vida deve ser levada com gozo e pouco siso. O seu álbum de estreia enquanto dupla, Baño Maria, é tão extraordinário quanto descomplexado. Funde trap, drum and bass, eletrónica, funk brasileiro e música latina numa vertigem de 12 temas que apetece ouvir noite fora, até sermos obrigados a sair da pista de dança de óculos de sol postos à procura do croissant misto que salve a ressaca do dia seguinte. Como em qualquer noite épica, neste disco há espaço para o engate, o sentimentalismo, a cagança e a vulnerabilidade, tudo embrulhado com uma mestria musical que, não por acaso, pôs a internet doida quando a dupla se apresentou no Tiny Desk Concert da NPR. Que ninguém se equivoque: estes dois ainda vão dar muito que falar.

Y’Y
Amaro Freitas
(Psychic Hotline)

Foi uma visita à floresta da Amazónia em 2020 que inspirou Amaro Freitas a compor Y’Y, título que significa “água” no dialeto do povo indígena Sateré Mawé. O álbum é um manifesto climático onde os sons dos pássaros, dos golfinhos boto rosa e das árvores se misturam com o jazz de Amaro Freitas, também ele fruto de muitas confluências. Na sua linguagem, o músico pernambucano explora técnicas do piano preparado de John Cage com linhas de berimbau de Naná Vasconcelos. Afunila o erudito, o popular e o experimental num rio só, que resulta numa música altamente sensitiva e humana. A somar à excecionalidade de Freitas, este disco tem ainda participações de Jeff Parker, Brandee Younger, Hamid Drake, Shabaka Hutchings e Aniel Someillan, contributos que engrandecem ainda mais Y’Y e o próprio Amaro Freitas, mestre da partilha em todos os sentidos da palavra.

UMA CANÇÃO de 2024: “Aprender a Amar”, Nathy Peluso

Aprender a Amar é uma canção direta de 1 minuto e 39 segundos que causa dano logo à primeira audição. É Nathy Peluso a dar o mote para Grasa, segundo álbum de originais da argentina, a viver em Espanha, que discorre sobre a glória e as dores da fama.

Sou uma sem-vergonha quase clássica, diz praticamente a abrir, mostrando-se confortável com qualquer estilo que lhe apareça à frente. No final do tema, há um arranjo de sopros sujo a lembrar El Madrileño, de C. Tangana, que coroa uma artista múltipla, global, sem medo de perrear nem de chorar. Tienes que aprender a amarte, perra.

Romance
Fontaines DC
(32 County Love Train)

Em discos anteriores, os Fontaines tinham afinado ao limite um modus operandi herdado dos The Fall: por cima de um riff poderoso uma voz quase falada, tudo assente em belos grooves. Mas em Romance alargaram o espectro musical: em Starbuster encontraram uma faixa gigante, que se tornou omnipresente, no resto do disco aproximaram-se da pop sem abdicar da herança punk. Romance tornou-se um caso de amor – e possivelmente o disco que os levará a encher estádios.

Manning Fireworks
MJ Lenderman
(Anti-)

Impressiona que um rapaz de 25 anos conheça tão bem a história da música country alternativa, desde as estrelas recentes (Jason Molina com os Magnolia Electric Co.) às longínquas inflexões de Neil Young pelo género – e impressiona ainda mais que saiba trazer os fantasmas de ambos para os dias de hoje, enchendo as canções de personagens atuais. Mas o talento lírico não valeria de muito se não houvesse melodias à altura – e, como bónus, guitarrada basta, que serra, mói e conforta.

CHROMAKOPIA
Tyler, The Creator
(Columbia)

Talvez um dia, quando o tempo nos permitir a distância necessária para observar com objetividade, cheguemos à conclusão de que os grandes discos de Tyler foram Flower Boy e Igor. Mas por enquanto é preferível apreciar o que ele nos oferece – e Chromakopia está cheio de grandes temas, de Rah tah tah aos órgãos maravilhosos  de Darling, I, passando pelos riffs Noid e pela extraordinária reflexão sobre o seu pai que é Like him. Como bónus temos a presença da magnífica Doechii, em Baloon. Tyler simplesmente recusa-se a não fazer grandes discos.

My Method Actor
Nilüfer Yanya
(Ninja Tune)

Quando estava a crescer, Nilüfer Yanya era fã dos The Cure e dos Pixies – e isso notava-se nos álbuns anteriores, em que as guitarras eram mais pesadas e tinham mais preponderância na escrita. My Method Actor é outra música: menos agressivo, mais sedutor, ao ponto de Binding lembrar Sade. Disco de reflexão interior, está pejado de grandes torch songs, arranjos de cordas discretas mas eficazes, e uma voz fenomenal que parece ter encontrado a sua temperatura ideal.

Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me
Porridge Radio
(Secretly Canadian)

No fim da digressão de promoção de Waterslide, Diving Board, Ladder To The Sky, o álbum anterior dos Porridge Radio, Dana Margolin, a líder da banda, deu por si não só em estado de total exaustão, como de coração partido. O mal dela é o nosso bom, porque no processo de recuperar ela deu por si cheia de lixo para atirar cá para fora, lixo convertido em beleza, mas uma beleza particular, que já não depende tanto de guitarrada e gritaria e encontra mais soluções – sejam cordas, metais, pianos, órgãos ou a alternância entre momentos mais lentos e mais acelerados, a verdade é que a escrita dos Porridge Radio encontra aqui o seu momento maior.

UMA CANÇÃO DO ANO: “Wristwatch”, MJ Lenderman

A alt-country de MJ Lenderman oferece-nos uma das personagens de canções do ano, no caso um homem que tem tudo, até um telefone inteligente que lhe diz que está só.

Parece coisa pouca, mas é uma tirada de génio, numa canção pungente, que traz (com escassas palavras) a country para o século XXI enquanto nos oferece algumas das melhores e mais belas guitarras do ano.

Manning Fireworks
MJ Lenderman
(Anti-)

Não se riam, apenas metade do que ele diz é piada, garantia de MJ Lenderman: “Please don’t laugh only half of what I said was a joke”. A pose de falhado é extremista, desde o desgosto amoroso debaixo de uma bandeira do McDonald’s em meia haste, ao relógio de pulso que é uma bússola e um telefone, que lhe informa, atempadamente, que está completamente sozinho. A solidão é o cerne de Manning Fireworks, um regresso iluminado aos misantropos das guitarradas piegas, aos hinos alt-country choninhas, o homem nem se aguenta em pé, de joelhos e voz esganiçada. Esta é a história pela metade, até ao final, naqueles 10 minutos de distorção e lamúria, intensifica a dúvida — será tudo galhofa — e consolida-se uma certeza: álbum do ano, pois claro.

Here in the Pitch
Jessica Pratt
(City Slang)

Um sonho californiano neste dia de inferno. Em 1963, John Phillips dos The Mamas & the Papas estava em Nova Iorque, entre folhas secas e o céu cinzento, a fantasiar com uma terra prometida, a calorosa California Dreamin. 60 anos depois, Jessica Pratt persegue o mesmo sonho, na hora do crepúsculo, caminha pelas ruínas de São Francisco, encontra mellotrons, acordes suspensos, as excentricidades de Tim Buckey, as meticulosidades de Brian Wilson, um lugar sem tempo. E apenas 27 minutos depois, desperta, de volta a um dia de inverno — não sei quanto a vocês, eu não aceito este desenlace, roda o disco novamente, a caminho da Califórnia quimérica, de flores murchas na lapela.

Only God Was Above Us
Vampire Weekend
(Columbia)

Há quatro anos, nos bastidores do Coliseu de Lisboa, entrevistei o Ezra Koenig, na altura de Father of the Bride, e reclamei da invulgar distância temporal entre cada lançamento, ao que o compositor dos Vampire Weekend deu uma resposta ainda mais invulgar: “A pergunta que interessa é ‘como é que os Vampire Weekend podem ser mais como os Vampire Weekend?’”. Aquele álbum, de temáticas grandiloquentes e canções desapaixonadas, não era a resposta, onde estava a melomania obsessiva, a densidade harmónica, o pulso polirrítmico, as micro referências obscuras, enfim, os Vampire Weekend. Graças a Deus, que está acima de nós, Only God Was Above Us é, em suma, sem tirar nem pôr, Vampire Weekend.

The New Sound
Geordie Greep
(Rough Trade)

Em meados deste ano, Geordie Greep, então vocalista dos Black Midi, virtuosos insurgentes de Brixton, divagava no Instagram Live, e perguntam-lhe, então e o novo álbum da banda, qual banda, respondeu, os Black Midi acabaram. E na semana seguinte lançou um primeiro single a solo, Holy Holy, quase uma segunda morte dos Black Midi: a cena é de musical da Disney depravado, naquela voz de caixeiro-viajante em metanfetaminas, Geordie encarna um sedutor patético que contrata uma prostituta, ao som de, aparentemente, versões salsa dos Steely Dan. The New Sound é o álbum de 2024 recomendado para os aficionados de “eu ouvi mesmo isto?”.

Pastoral
Emmy Curl
(Cuca Monga)

Até este ano, ninguém me convencia que a Emmy Curl do MySpace era uma tal de Catarina Miranda de Vila Real. A miúda prodígio, seja pop eletrónica, seja baladeira melancólica, era sobretudo uma voz meiga, uma entidade celeste. Ora bem, dez anos depois, Emmy Curl acorda abruptamente da encantadora viagem, ouvem-se bombos e cantoria serrana, está de regresso a casa, estamos no Alto Douro à meia-luz, quando os diabretes ziguezagueiam a vinha, bailam mascarados à volta da queimada. Pastoral é folktronica, é rave, é um drone que sobrevoa indetetável pela paisagem transmontana, e acima de tudo, é Catarina Miranda, a Emmy Curl.

UMA CANÇÃO DE 2024: “Espresso”, Sabrina Carpenter

A canção ouve-se de um trago, serve-se quente e curta, sintam o travo a disco, os odores a funk, com um final de boca imediato, coisa que vende como pãezinhos, ou melhor, cafezinhos quentes. O gancho inescapável de Espresso, simultaneamente reminiscente e inédito, é o principal ingrediente, mas é o absurdismo hilariante que garante um lugar no olimpo da pop — em tradução livre: “dizes que não consegues dormir, bebé, eu sei, isso sou eu, uma bica”.

Não satisfeita, Sabrina Carpenter ainda serve este café com cheirinho, apresenta-se uma espalhafatosa sedutora, com versos que são mais meme que poesia. Este é comigo, rendemo-nos, deixe estar que eu pago o próximo.

Alligator Bites Never Heal
Doechii
(Top Dawg)

Foi a partir da editora Top Dawg Entertainment que fomos apresentados a nomes como Kendrick Lamar, ScHoolboy Q, Isaiah Rashad ou SZA. Agora é a vez de Doechii, que em 2024 apresentou um estrondoso primeiro longa duração. Autoproclamada “princesa do pântano”, esta rapper natural da Florida explora neste projeto os seus dotes líricos mas também melódicos, com uma energia confiante e uma ambição pop que torna o seu trajeto cada vez mais promissor. Do estrelato crescente conquistado nos últimos anos às relações pessoais, passando pelos vícios ou pelas perceções em torno do sucesso, do storytelling aos versos frenéticos, impondo-se num mundo duro e viril, Doechii mostra que tem argumentos e versatilidade para dar e vender no trabalho mais elaborado feito até agora.

CHROMAKOPIA
Tyler, The Creator
(Columbia)

Com o seu novíssimo álbum, Tyler, The Creator volta a provar como é um dos rappers mais criativos e originais. Chromakopia é uma peça esteticamente conceptual, de tons noir e evocativa da era Black-Vaudeville. Da paranoia ao trauma de crescer sem pai, das pressões sociais ao medo da paternidade, o artista fala de si e das questões que o inquietam através de Saint Chroma, a personagem em torno da qual este álbum foi construído. Vai beber novamente a sonoridades jazzísticas e da soul, orquestrando um hip hop que tanto soa refrescante como clássico, abraçando o cancioneiro afro-americano mas levando-o um passo mais longe, em direção à contemporaneidade.

DEIRA
Saint Levant
(SALXCO)

Filho de uma franco-argelina e de um sérvio-palestino, Saint Levant lançou este ano o seu aguardado álbum de estreia, de profunda homenagem a Gaza, vítima de um terror há décadas mas cujo sofrimento só se tem intensificado ao longo do último ano. O título do disco, bem como a respetiva capa, é alusivo a um hotel gerido pelo pai do músico na Palestina. Foi o sítio onde cresceu, e que acabou destruído nos bombardeamentos do ano passado. Enquanto símbolo, representa o sonho de uma Palestina livre e a nostalgia sobre um tempo melhor. As raízes e influências diversas de Saint Levant refletem-se diretamente na sua música: as letras cruzam o árabe, o francês e o inglês como se se tratasse de apenas uma língua; os sons pop contemporâneos mesclam-se com melodias e ritmos tradicionais que vão da Palestina ao Norte de África, dando vida a um corpo musical coeso e inventivo. Não está na altura de o Ocidente prestar mais atenção ao legado cultural do mundo árabe?

Estradas
Nídia & Valentina
(Latency)

Numa fase em que a chamada “batida de Lisboa” se torna um movimento cada vez mais consolidado e maduro, revela-se cada vez mais o potencial de cruzamentos deste universo com outros mundos musicais. Foi o que aconteceu quando um dos principais nomes deste circuito, a aclamada produtora portuguesa Nídia, de ascendência cabo-verdiana e guineense, se uniu à baterista e compositora italiana Valentina Magaletti. O resultado é um álbum definido pelo ritmo, uma viagem diversa e pujante pelas Estradas de uma afro-eletrónica refinada que ainda assim pede agitação.

Vou Ficar Neste Quadrado
Ana Lua Caiano
(Glitterbeat)

Afirmou-se nos últimos anos como uma das grandes promessas da música portuguesa, mas com o seu primeiro álbum demonstrou definitivamente o seu talento e relevância. A cantautora e produtora tem vindo a cruzar a tradição nacional com as infinitas possibilidades da música eletrónica, o que a tem levado a percorrer o país (e o mundo) com uma pop fresca assente nas raízes. De produção elaborada e letras altamente poéticas, Ana Lua Caiano representa muito mais do que uma pedra no charco ou uma lufada de ar fresco. O futuro da música portuguesa passa mesmo por aqui.

UMA CANÇÃO DE 2024: “Bastonada nos Dentes”, Filipe Sambado

Um dos singles que Filipe Sambado apresentou este ano aborda a violência policial e a forma como esta tomou conta da função das forças de segurança na nossa sociedade, num ano em que tanto se discutiu os aumentos e as condições da classe profissional como os alegados casos de abuso de autoridade, como o assassinato de Odair Moniz ou a violenta história de Cláudia Simões.

O tema não podia estar mais na ordem do dia. Musicalmente, a canção vem na linha hyperpop que Sambado tem vindo a trilhar desde o álbum Três Anos de Escorpião em Touro (2023), mas com uma adrenalina punk rock que percorre a produção complexa e auspiciosa.





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