A passagem do centésimo aniversário do nascimento do Dr. Mário Soares deu lugar a grandes comemorações, como é natural, tratando-se de uma personalidade decisiva da classe política deste regime. E como é também natural, a grande maioria das intervenções foi laudatória, com excepção da de André Ventura, na Assembleia da República, que teve o mérito de sublinhar o papel crucial do então ministro dos Negócios Estrangeiros do governo provisório de Vasco Gonçalves na descolonização. Um governo provisório que, sob a pressão de um colectivo militar, tomou as decisões mais definitivas da História de Portugal depois da Restauração de 1640 e da Guerra Civil de 1828-1834.
De resto, Mário Soares fazia-o coerentemente, já que tinha sido a primeira personalidade da oposição democrática a tomar uma posição “anti-colonialista”, quebrando o republicanismo histórico patriótico que levara a resistência não-comunista ao regime a apoiar a política de Salazar de defesa do Ultramar em 1961, no início da guerra de Angola.
Salazar é, sem dúvida, a figura política central da história de Portugal do século XX. Primeiro, porque foi dominante entre Abril de 1928, quando chegou ao governo da Ditadura Militar como Ministro das Finanças, e Setembro de 1968, quando deixou o poder; depois, porque os seus inimigos políticos, de Mário Soares a Álvaro Cunhal, dos militares do MFA às novas esquerdas, continuaram a tê-lo como referência para dizer e fazer exactamente o contrário do que faria.
É, também, natural. Salazar era um nacionalista conservador autoritário, um homem que punha o interesse nacional português e a sua razão de Estado acima de qualquer ideologia de esquerda, centro ou direita, comunista, liberal ou fascista. Considerava-se um depositário de uma herança que vinha do rei-fundador, passava por Nun’Álvares e Aljubarrota, pelo Infante das Descobertas, pelos conquistadores das Índias e povoadores do Brasil. Revia-se nos insurgentes da Restauração, no patriotismo orgulhoso de Pombal, na resistência popular aos franceses nas invasões; e nos “Africanos”, de António Enes a Mouzinho de Albuquerque e a Caldas Xavier, que tinham entendido e salvado o Império depois da partilha africana de Berlim.
Fora esse o legado que recebera e que considerava um dever conservar, até porque estava convencido que, sem Ultramar, sem Império, Portugal acabaria por perder a independência, ficando um país periférico numa Península e numa Europa mais poderosas.
O Dr. Soares tinha outros valores; como foi realçado por vários dos seus correligionários e admiradores, era um democrata e um europeísta a quem pouco diziam grandezas históricas e presenças imperiais que pudessem pôr em causa ou suspender a democracia partidária e os seus valores individuais de liberdade de expressão e organização.
Desses valores, Salazar tinha, não só a referência crítica negativa, por razões doutrinárias, da “democracia cristã” dos Papas Sociais e do racionalismo maurasiano, como a experiência da Primeira República. Mário Soares, também porque pertencia, por família, à aristocracia dessa Primeira República, que com o 28 de Maio e o Estado Novo seria afastada do poder por meio século, tinha convicções opostas. Não podia gostar de Salazar.
E não gostava. Embora, para o fim, num momento de mal contida fúria contra os modernos governantes, viesse fazer, a seu modo, um reconhecimento da probidade pessoal e da isenção de Salazar.
Porque Mário Soares era assim. Tinha sentido político e sabia que era o Inimigo que fazia o Amigo ou o Aliado, e que, por isso, contra o Inimigo principal do dia, não hesitava em aliar-se com os inimigos, mesmo os principais, da véspera.
Estivera no Partido Comunista, mas o golpe de Praga e o destino dos então “colaboracionistas” com os comunistas – o suicídio por defenestração de Jan Masaryk impressionou-o muito – afastaram-no do Partido. Ainda colaborou no frentismo de 1949, à volta da candidatura presidencial do republicano e “colonial” general Norton de Matos, que iria também cortar com os comunistas, e acabar os seus dias protegido contra eles.
Inteligente, rápido, com sentido da manobra, Mário Soares não podia deixar de aparecer no radar das organizações que, no tempo da Guerra Fria, tinham por tarefa estar atentas, em países como Portugal, a alternativas oposicionistas não-comunistas. Organizações que, na área militar, tinham já identificado um unificador da oposição – Humberto Delgado – e que entre os civis, desde o caso do “Ballet Rose” e da sua denúncia mediática no exterior, tinham apoiado discretamente o futuro líder socialista. Para eles e os seus interesses, alguém equidistante do Estado Novo e do comunismo soviético – o inimigo número 1 – era importante.
Este inimigo, o PCP, era chefiado em Portugal pelo terceiro político deste terceto, depois de Salazar e de Soares – Álvaro Cunhal. Em 1945, a seguir à Guerra, as veleidades da oposição democrática de conseguir apoio em Washington e Londres para derrubar Salazar tinham caído perante os despachos das respectivas embaixadas de que, não havendo nenhuma liderança e capacidade alternativa na oposição democrática, o fim do Estado Novo significaria o risco da tomada do poder pelos comunistas. Em 1974, como documentou Tiago Moreira de Sá, não só a embaixada americana estava a leste da conspiração corporativa dos capitães, cansados da guerra de África, como estes deram ao PREC um movimento próprio em que o PCP tinha trunfos, ao ser a única organização política sobrevivente além do “partido único” dissolvido, UN-ANP. E os comunistas tinham também o prestígio, com alguma razão, de ter sido o “inimigo principal” do Regime e o grande destinatário da repressão policial. E assim Cunhal, homem determinado, inteligente, fidelíssimo a Moscovo, nostálgico do estalinismo, interveio com o seu Partido no PREC. Essencialmente para garantir que a descolonização tivesse um sentido favorável à URSS, mas também para, no 28 de Setembro e no 11 de Março, mobilizar a sua gente na “luta antifascista”, saneando, perseguindo e prendendo reaccionários, latifundiários, capitalistas e seus agentes reais ou imaginários. Pôr a reacção na cadeia era coisa de que tinha, a partir da Rússia e da Europa Oriental, um vasto know-how. Aqui não foi muito mau porque durou pouco.
O Dr. Soares esteve na frente comum anticolonial; no 28 de Setembro continuou no governo de Vasco Gonçalves e não pareceu muito incomodado com as centenas de presos sem culpa formada, então nas prisões da jovem democracia. Também aprovou as nacionalizações do 11 de Março e alinhou no discurso antifascista, até que, ao ver chegar-lhe à porta a procissão, se deve ter lembrado de Kerensky na revolução russa e de Jan Masaryk em Praga, em 1948. A ele não o defenestrariam.
Nessa ocasião, já o quadro geopolítico estava traçado, com a irreversibilidade da descolonização, que possibilitava a viragem nas Forças Armadas sem risco de voltar à guerra; e também estava garantida a aceitação por Moscovo das regras da partilha de Ialta. Tudo isto seria regulado no 25 de Novembro, que instituiu o Centrão e permitiu salvar o PCP e o Dr. Cunhal do perigo da contra-revolução.