Era uma iniciativa aguardada com grande expectativa — até pela controvérsia que foi gerando — e Pedro Passos Coelho não fez as coisas por menos. O antigo primeiro-ministro esteve esta tarde na apresentação do livro Família e Identidade e sugeriu, nas entrelinhas, que Luís Montenegro deveria procurar entendimentos com André Ventura, sob pena de desperdiçar uma oportunidade única de reformar o país e de desrespeitar todos aqueles que votaram na Aliança Democrática e no Chega.
André Ventura assistiu a toda intervenção do antigo primeiro-ministro a partir da Livraria Buchholz, em Lisboa — e aproveitou o momento para lançar Passos como candidato a Belém. Nuno Melo, líder do CDS e agora ministro da Defesa, também esteve presente e não faltaram outras ilustres personalidades da direita. A ausência mais notada, de resto, foi mesmo a direção do PSD, que não se fez representar nesta iniciativa.
Ao longo de uma intervenção de cerca de 45 minutos, e sem nunca falar em concreto sobre Luís Montenegro, Pedro Passos Coelho sugeriu que é um erro manter a política do “não é não” ao Chega, um “insulto” para todos aqueles que votaram no partido de Ventura. “Dizer que respeitamos as pessoas, mas não respeitamos as suas opções é bocadinho um insulto. Se fizer esta escolha, daqui não leva nada. Se fizer aquela escolha, comigo não fala. Não é uma maneira urbana de construirmos um mundo melhor”, apontou Passos.
Mesmo nunca nomeando o PSD ou o Chega, o antigo primeiro-ministro sugeriu que compreenderia se os dois partidos recusassem falar “se se confundissem”, se competissem diretamente entre si. “Aí, podiam ter medo de trocar impressões entre si”, concedeu Passos. Mas se há diferenças bem demarcadas entre os dois partidos, e se não se esvaziam um ao outro, então é um erro desperdiçarem a plataforma comum de entendimento que podem construir juntos, sugeriu o antigo primeiro-ministro.
“Somos diferentes, mas o que é que podemos fazer em conjunto? Temos de salvaguardar a capacidade para nos podermos entender”, acrescentou Passos, antes de deixar um aviso à navegação: “Por vezes, no plano da política, há uma intenção de usar uma linguagem para deliberadamente nos desentendermos ou nos fazermos de desentendidos. Era preferível que oferecêssemos às pessoas uma imagem diferente. Há muitas pessoas que se começam a maçar desse teatro. Não é genuíno, é posicional, tático. No fim do dia, as pessoas percebem. Não gostam de ser tratadas como invisíveis.”
“Devemos tratar as pessoas com inteligência e deixá-las decidir; e quando decidem devemos respeitar as suas decisões. A melhor forma de o fazer é através das instituições, no Parlamento, no Governo”, continuou Passos, pedindo àqueles que receberam um voto de confiança — Montenegro, leia-se — que olhem para “as pessoas que ficaram desiludidas nestes anos”, que “ponham realmente um fim a isso e que ofereçam às pessoas razões para acreditar”.
O antigo primeiro-ministro sempre considerou um erro de palmatória que se traçassem cordões sanitários em torno do Chega por entender que é uma cedência à agenda do PS e dos partidos à esquerda do PS, uma concessão que limita as hipóteses do PSD de regressar ao poder, e que pode acabar por alienar, inevitavelmente, eleitores essenciais, arriscando o descalabro. De resto, a discordância em torno da estratégia que deveria ser seguida em relação a Ventura foi uma das primeiras dessintonias entre Passos e Montenegro, o primeiro irritante de uma relação que começou bem (os dois a posarem juntos, no calor da Festa do Pontal) e que está gelada neste momento.
À saída, André Ventura associou-se às palavras de Pedro Passos Coelho e sugeriu que o antigo primeiro-ministro pode vir a ter o apoio do Chega caso pretenda ser, no futuro, candidato à Presidência da República. “O discurso de hoje é mais das bandeiras do Chega. A ideologia do género, a questão da família, da imigração. Passos Coelho é do PSD, eu respeito isso, mas é justo dizer que há aqui um caminho de convergência. Acho que hoje este discurso marcou um bom momento, um bom dia para essa convergência. Talvez essa convergência permita até um candidato presidencial – porque não Pedro Passos Coelho?”, deixou no ar Ventura.
Já perto final da sua intervenção, Pedro Passos Coelho elogiou Luís Montenegro por ter escolhido como primeira medida simbólica do novo Governo a reversão do logótipo utilizado nas comunicações institucionais, voltando à imagem que era usada anteriormente e que preserva elementos visuais da bandeira nacional como a esfera armilar, os castelos e as quinas.
Ainda assim, Passos pediu que Montenegro não ficasse por aqui. “Não podemos fazer de conta que podemos brincar com os símbolos. Os símbolos não pertencem a cada um de nós. O Governo esteve bem. Exorto a que não se fique por aqui”, defendeu o antigo primeiro-ministro.
No essencial, toda a intervenção de Pedro Passos Coelho esteve centrada nos valores da família e da identidade, rejeitando os “rótulos” e as “caricaturas” que um certo grupo quer colar a todos os que defendem determinadas ideias. De resto, logo à chegada, e ainda antes de intervir, o social-democrata disse aos jornalistas presentes ao que vinha, reagindo diretamente à polémica que o livro — que se apresenta com sendo um contributo contra “os adversários da família”, “a ideologia de género” e “a cultura de morte” — está a causar.
“Todas as caricaturas têm de ser contextualizadas, senão perdem o sentido. A minha função é chamar a atenção e sublinhar a oportunidade que matérias como esta, que aqui são tratadas, devem merecer no espaço público e na discussão pública. O conceito de família foi evoluindo ao longo do tempo. E é a realidade das coisas que se impõe. Isso não significa que não deva haver lugar a uma certa idealização dos conceitos e que não possamos ter um ideal de família. Eu, por exemplo, sou hoje aquilo a que se chama um pai solteiro, aconteceu assim, não foi uma coisa que eu tivesse desejado. Há muitas pessoas que são mães solteiras e pais solteiros, mas dificilmente isso corresponde em média aquilo que nós chamamos uma idealização do conceito da família. É nesse sentido que as coisas devem ser vistas”, começou por explicar.
“A família nem sempre é considerada nas políticas públicas. As políticas públicas muitas vezes desconsideram a família, em qualquer das suas visões ou idealizações. E isso não é bom. Essa é uma das razões por que eu acho que que é útil esta abordagem muito diversificada, porque permite uma discussão. E quando queremos discutir as coisas com seriedade, temos de tomar as diversas visões e discuti-las com espírito aberto e tolerante“, continuou o antigo primeiro-ministro.
Já durante a sua intervenção, Passos recuperou a ideia deixada minutos antes aos jornalistas: estava ali para participar numa discussão sobre família e identidade e para tentar desconstruir as “caricaturas” que se vão fazendo sobre e contra uma certa direita. “Sabemos que há no espaço público uma preocupação de excessivamente procurar criar rótulos que são utilizados com uma intenção clara de desqualificar aqueles que lançam as discussões, de os diminuir e de os condicionar”, lamentou.
A seguir, Passos sugeriu que havia uma motivação político-partidária nessa tentativa de condicionar o espaço público. “Portugal, apesar de algum atraso, também vem conhecendo este vício que diminui o espaço público”, alegou. Dando como exemplos rótulos que se vão colando a quem defende determinadas visões sociais (“direita ultramontana”) ou até económicas (“ultraliberais”), Passos recorda aquilo que ouviu muitas vezes: “Eu fui fascista imensas vezes”, atirou.
“Incomoda-me que estas caricaturas excessivas sejam utilizadas por quem tem proeminência no espaço público”, continuou Pedro Passos Coelho, dizendo que essa atitude só torna o “debate mais pobre e radicalizado, porque não deixa espaço para compromissos”.
Houve ainda tempo para que Pedro Passos Coelho falasse de três questões diferentes: o binómio imigração/segurança, a educação enquanto formadora de personalidade e a ainda sobre a proteção da vida e da família. Quanto ao primeiro tema, o antigo primeiro-ministro repetiu grande parte do argumentário utilizado quando discursou num evento eleitoral da Aliança Democrática, em Faro: dizer que a imigração deve ser regulada, insistiu Passos, não pode ser confundido com uma política anti-imigrantes.
“A imigração não se resume apenas a questões de segurança, mas há matérias de segurança que têm de ser acauteladas”, sintetizou Pedro Passos Coelho, já depois de ter dito que tinha sido um “erro” acabar com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que é preciso estar atento a fenómenos de intensificação da imigração e que Portugal está obrigado a cumprir os seus compromissos no quadro do Espaço Schengen. “Não devemos confundir isto com a ideia de que os imigrantes não são bem-vindos”, salvaguardou Passos, lembrando que a sociedade portuguesa é, em grande medida, fruto de processo histórico de miscigenação.
No que respeita ao papel das políticas públicas na formação das crianças e adolescentes, o social-democrata concedeu que o Estado precisa de ajudar “as famílias”, mas isso não significa que a Escola se possa julgar no direito de transmitir uma “ideologia” e “ideias e valores que são muitas vezes opostos àqueles que os pais querem transmitir aos seus filhos”. “As famílias precisam de ser ajudadas na educação dos filhos, mas dificilmente o conseguiremos com uma espécie de sovietização do ensino”, criticou.
Além disso, Passos falou ainda contra uma certa ideia cada vez mais dominante de “despersonalização” do indivíduo, que privilegia políticas públicas que “ajudam a morrer” quem está na “velhice”, quem enfrenta “doenças crónicas”, “problemas de saúde mais graves”, e “não ajudar estas pessoas a viver com dignidade”, numa referência evidente à despenalização da morte medicamente assistida.