Muitos torciam o nariz, alguns mais conhecedores diziam que iria ser a surpresa do evento, todos lá queriam ir dar uma vista de olhos – e todos eram não só aqueles que tinham bilhete para o recinto da modalidade mas também os milhares de pessoas que aproveitaram o dia para aceder à Praça da Concórdia e assistir através dos ecrãs gigantes de outros venues à prova. O breaking (ou breakdance, dependendo da fonte de consulta) concentrava muitas atenções e nem mesmo o dia chuvoso que se fazia sentir na estreia em Jogos Olímpicos atenuou essa mobilização em Paris. Questão? Ao contrário de todos os outros desportos, o nome que ficou para a posteridade não foi aquele que ganhou ou que brilhou mas sim o que ficou em… antepenúltimo.
Um exercício rápido e simples. Ainda se recorda de quem ganhou o concurso feminino? Não? Uma ajuda: foi a chinesa Liu Qingyi, que tinha o nickname 671. Quem ficou com a medalha de prata? A lituana Dominika Banevic, mais conhecida por Nicka. Em que posição terminou a portuguesa Vanessa Marina? Em nono, só a um lugar dos diplomas após falhar os quartos da competição. No entanto, falando da australiana Rachael Gunn outras luzes surgem. Raygun teve uma prestação que não demorou a tornar-se viral um pouco por todo o mundo, entre o caricato da atuação e um desconhecimento transversal em relação aos pontos que algo fora da caixa e original pode valer. Não ganhou, acabou com zero pontos, tornou-se mundialmente conhecida.
“Foi algo completamente de loucos. Se as pessoas agora andam atrás de mim, o que posso fazer? Tudo o que aconteceu deixou-se num enorme estado de pânico. Passei a estar nervosa por estar em público. Foi muito stressante durante um tempo porque foi muito triste ouvir todos os críticos depois dos Jogos Olímpicos. Lamento muito toda a reação que a comunidade [do breaking] acabou por sofrer mas não consigo controlar a forma como as pessoas reagem. A forma enérgica com que falaram depois foi bastante alarmante. Enquanto estive lá diverti-me, levei tudo muito a sério. Trabalhei muito na preparação dos Jogos e dei tudo o que tinha, a sério. Acho que o registo com que cheguei aos Jogos fala muito por si”, comentou mais tarde a atleta australiana, numa entrevista ao The Project do Channel 10 onde recordou as conquistas anteriores.
“Fui campeã da Oceânia, por isso é que conseguiu uma qualificação direta para os Jogos. Havia nove juízes, todos de fora do continente. Sabia que as minhas hipóteses seriam curtas logo após a qualificação mas as pessoas não percebem o breaking e simplesmente ficaram chateadas com a minha performance. Todas as teorias da conspiração foram horríveis, tudo foi realmente perturbador para mim. Agora as pessoas atacam a nossa reputação e a nossa integridade – mas nada baseado em factos. Sketch do Jimmy Fallon sobre mim? Ainda não sei se devo abraçá-lo ou se devo gritar com ele porque acabou por dar-me uma plataforma. Não estou ainda em condições de ver mas em algum momento irei assistir”, acrescentou.
Tenho os meus altos e baixos, tenho dias bons e maus. Apesar de tudo, também foi incrível ver a resposta positiva à minha prestação porque nunca pensei que me pudesse ligar a tantas pessoas mas tem sido difícil. Felizmente, encontrei algum apoio a nível de saúde mental de forma rápida”, contou Rachael Gunn, falando sobre a importância da terapia depois dos Jogos.
“O breaking tem muito a ver com a originalidade e com a possibilidade de trazer algo novo para cima da mesa, capaz de representar um país ou uma região. Foi isso que a Raygun fez, inspirou-se nas coisas que a rodeiam e que neste caso, por exemplo, foi um canguru. Temos cinco critérios de avaliação numa competição enquanto juízes e o seu nível apenas não foi tão alto como o das outras atletas. Mas, mais uma vez, isso não significa que ela tenha sido má. Deu o seu melhor, ganhou a qualificação na Oceânia mas, infelizmente para ela, as outras b-girls foram melhores”, defendeu Martin Gilian, ou MGbility, que foi chefe dos juízes nos Jogos. Nem tudo foi mau: Adele elogiou-a a meio de um concerto em Munique, teve a oportunidade de conhecer Richard Branson. No entanto, todas as críticas nas redes sociais superaram os aspetos “positivos”.
Tudo mudou na vida da australiana de 37 anos que tinha “outra” vida. A dança esteve sempre presente no seu crescimento, tendo aulas de variados estilos entre as danças de salão e o sapateado, e também o percurso académico apontou nesse sentido a ponto de ter completado a tese de doutoramento com uma dissertação em torno do tema “Desterritorializar o género no contexto do breakdance em Sidney: a experiência B-boy de uma B-girl”. Raygun conciliava as aulas na Universidade Macquarie, na capital do país, com o gosto pela dança, neste caso o breaking. Era isso e apenas isso. Depois dos Jogos Olímpicos, tudo mudou. Nada voltou a ser como era antes. Três meses depois, tenta resgatar a “sua” vida e anunciou que vai deixar o desporto.
“Não vou voltar a competir, não vou. Até poderia continuar a competir mas depois de tudo o que se passou é difícil fazê-lo. Foi um período muito complicado, não tinha nenhum controlo sobre como as pessoas me viam ou quem eu era. Vou tentar ficar com as partes positivas e é isso que me ajuda a seguir em frente. Houve uma campanha de ódio depois dos Jogos Olímpicos que me deixou dececionada. Ainda faço break mas deixei de competir nem vou competir mais. As pessoas vão filmar, vão gravar, vão colocar na internet, o escrutínio vai estar sempre presente. Depois de tudo o que aconteceu não será a mesma coisa”, disse à rádio 2DayFM, recordando também a petição que chegou aos 50.000 assinantes para que fosse eliminada do programa do Comité Olímpico da Austrália por ter alegadamente manipulado critérios de qualificação.
“Dançar é muito divertido e é algo que te faz sentir bem, não creio que as pessoas se devam sentir mal pela forma como dançam. Devia ser apenas irem para a pista e divertirem-se. É impossível processar todas as teorias da conspiração totalmente sem sentido contra mim”, acrescentou a atleta australiana.