O presidente do Supremo Tribunal Administrativo criticou, esta terça-feira, a “indústria da litigância” ao serviço de interesses particulares e administrativos e o abuso dos recursos até à última instância processual, “expressão evidente” de um “estado de insanidade institucional”.
No discurso de encerramento da cerimónia comemorativa dos 20 anos do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), que, esta terça-feira, decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, o presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), o conselheiro Jorge Aragão Seia, apontou problemas da jurisdição administrativa e fiscal, “vítima do sucesso” da sua própria reforma.
Para o presidente do STA, a justiça administrativa foi vítima “das diversas vias processuais que abriu, de um oportunismo processual que abriu e não consegue combater de modo eficaz, e também da funcionalização do uso e abuso do processo administrativo e tributário para a prossecução de interesses alheios ao objeto do litígio e que explicam também uma parte dos lugares-comuns da crise, com especial destaque para a morosidade”.
Para Aragão Seia a questão explica-se em parte por alguns atores judiciários não terem “devidamente internalizados” alguns “deveres funcionais e deontológicos”, mas também “um modelo de sociedade que desvirtuou a essência dos litígios judiciais”.
“Hoje litiga-se, porque a litigância em si é uma indústria que se alimenta e retroalimenta. É por isso que o litígio só consegue terminar com a decisão da reclamação da última decisão judicial antes do trânsito em julgado e não é porque a questão seja complexa, ou particularmente difícil, ou duvidosa. É assim porque em boa parte dos casos interessa ser assim, interessa aos sujeitos privados e interessa às entidades administrativas. É assim porque culturalmente se convencionou que menos do que isso é desinteresse dos mandatários representantes legais ou má administração”, criticou o juiz conselheiro.
Aragão Seia apontou às partes, “entidades administrativas incluídas”, ou seja, também o Estado, “uma espantosa criatividade na exploração dos meios processuais”, desde providências cautelares a processos principais, a todos os tipos de recursos e incidentes, e aos tribunais e às decisões judiciais “citações doutrinais estéreis, fundamentações laterais e prolixas, que consomem tempo funcional em excesso e alguns casos acabam até por não esclarecer de forma clara as partes”.
“Garantir que todas as decisões judiciais têm que ser recorríveis é uma exigência do Estado de Direito. Verificar que uma percentagem esmagadora das decisões judiciais são recorridas e muitas até à última instância processual possível é uma expressão evidente do estado de insanidade institucional a que chegámos. É por causa deste contexto cada vez mais dificil fazer e propor reformas, porque é também mais dificil fazer diagnósticos racionais do sistema da justiça administrativa e fiscal”, disse o presidente do STA.
O juiz conselheiro considerou necessário “reformas processuais que travem a insanidade da ‘recorrite’”, reformas estatutárias que aumentem os “poderes de gestão” dos tribunais de forma transparente, mais produtividade, mas também que “não se avolumem erros de política legislativa que desprestigiam e apoucam esta jurisdição”, meios estruturais e materiais “condignos com a sua função”.
Considerou ainda “condição necessária e imprescindível” à melhoria da jurisdição “que o regime de recrutamento e formação de juizes e a configuração da carreira permitam selecionar profissionais com perfil adequado e elevadas qualificações em vez de potenciar que este processo se transforme num regime de ‘novas oportunidades’ para quem não singra em outras carreiras jurídicas”.
O presidente do STA apelou ainda para que “o poder político não seja complacente com o que está mal, para abrir novos caminhos para a privatização e desinstitucionalização no âmbito da arbitragem dos litígios administrativos e fiscais”, considerando-o um “imperativo de dignidade institucional”.
“Infelizmente, a justiça administrativa e fiscal parece hoje capturada por um discurso quantitativo que chega a ser confrangedor se quisermos atentar no facto que o que está em causa é uma função estadual essencial ao bom funcionamento do Estado de Direito e não uma linha de produção industrial”, criticou.
Ressalvou que “os números importam, claro”, mas o aumento das pendências deve levar a que “o legislador se interesse pelo problema com o objetivo de o resolver e não de o utilizar como argumento para construir soluções extrajurisdicionais”.