“A liberdade de expressão: uma super liberdade de proteção máxima e restrição mínima“. É este o título do dossiê que o Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, apresentou esta quarta-feira aos líderes parlamentares para justificar a sua posição relativamente às declarações de André Ventura e a sua proposta para criar um “voto de rejeição” no Parlamento. Tudo porque, conforme se lê no documento assinado pelo PAR, Aguiar-Branco rejeita que o seu papel seja avaliar “a bondade do discurso político” ou “instituir uma cultura de cancelamento linguístico”.
No dossiê, a que o Observador teve acesso, Aguiar-Branco faz uma análise sobre os valor da liberdade de expressão e os seus limites, mas também os limites que podem ou não ser, neste contexto, impostos especificamente aos deputados, e as ferramentas que estão à sua disposição para fazê-lo.
Desde logo, o Presidente da Assembleia da República argumenta que no regimento parlamentar já está prevista a figura do “protesto”, a que os deputados podem recorrer quando ouvirem expressões que promovam o “ódio racial, xenofobia ou outras formas de ódio baseadas na intolerância” — e propõe que se equacione a criação de um “voto de rejeição” para que se possa dar uma “voz” formal ao Parlamento quando queira condenar este tipo de discursos.
Aguiar-Branco propõe criação da figura do voto de repúdio contra discursos de ódio
Esse não é, no entanto, o papel do PAR, argumenta Aguiar-Branco: “Não lhe incumbe a avaliação da bondade de discurso político, ainda que eticamente desvalioso, nem lhe compete, em nome dos poderes regimentais que lhe são conferidos, instituir uma cultura de cancelamento linguístico, freando opiniões e assumindo-se como ‘guardião’ do aceitável e do politicamente correto”, escreve a segunda figura do Estado. “Não pode, em momento algum, o Presidente da Assembleia da República substituir-se ao Tribunal, na operação do critério de concordância prática (ou freios e contrapesos) entre a liberdade de expressão e outros princípios constitucionalmente garantidos.
A opinião de Aguiar-Branco sobre o assunto, que tanta polémica tem gerado desde que não censurou André Ventura por dizer que os turcos não são um povo conhecido por ser “trabalhador”, fica clara quando argumenta que numa sociedade democrática e plural a avaliação e derrota do discurso político faz-se com argumentos e confronto dos “factos” — “nunca por via da imposição de silêncio ou de censura que, quando começa, nunca se sabe onde pode acabar”.
“Bancada pode dizer que etnia é mais preguiçosa ou burra?”. Aguiar Branco responde: “Pode”, “não serei censor”
A interpretação que Aguiar-Branco faz da norma regimental que lhe permite fazer advertências ou retirar a palavra em caso de discurso injurioso ou ofensivo é, assim, bastante mais restritiva do que a que fizeram os seus antecessores imediatos, uma vez que acredita que esta diz respeito a uma função apenas “de natureza organizatória do debate”, para que este seja um “fórum de expressão de opiniões que, aliás, o povo tem direito a conhecer”.
A intervenção de Aguiar-Branco deve assim servir, no seu entender, apenas para evitar que o debate político seja “condicionado por injúrias, ofensas, chantagens ou ameaças entre os intervenientes“, e não por discurso dirigido a outras pessoas ou grupos. Por isso, para o PAR esse poder não significa que fique “investido de poderes de censura ou julgamento de eventuais infrações”.
No mesmo documento, Aguiar-Branco explica mais sobre o seu entendimento a propósito do papel que deve exercer, defendendo que a sua finalidade é “garantir as condições do debate” para que “todos” — uma palavra marcada a negrito no texto — os deputados estejam “investidos de igual legitimidade e dignidade conferida por sufrágio”.
Aguiar-Branco pronuncia-se também sobre o reforço de liberdade de expressão de que os deputados gozam — graças ao artigo constitucional que prevê várias “imunidades”, incluindo por opiniões que emitam no exercício das suas funções — frisando que isto existe para que se garanta que nenhum deputado fica “inibido de exprimir a sua vontade ou opinião política, no exercício das funções, pelo receio de estar a praticar um crime” ou de ter os mesmos cuidados que um cidadão comum tem quando se exprime. “Naturalmente que esta prerrogativa não foi concebida para privilegiar os deputados perante o cidadão comum, mas sim para os proteger“, frisa.
Além disso, esse direito não se “esgota” na narração de factos, insiste Aguiar-Branco, “antes supõe o direito de exprimir e divulgar o pensamento, estendendo-se também ao direito de opinião, o qual se exerce mediante a exteriorização de juízos de valor”.
Assim, apesar de o documento lembrar em vários momentos que a liberdade de expressão “não é um bem absoluto” e tem alguns limites, Aguiar-Branco vai frisando que é um direito essencial e que deve ser protegido para assegurar que existe uma “democracia pluralista” — e que no caso dos deputados essa proteção deve ficar ainda mais evidente. Essa liberdade “vale também para as informações ou ideias que melindram, chocam ou inquietam“, pelo que as exceções e limites impostos devem ter uma “interpretação restritiva” e ser aplicados apenas em casos de “imperiosa necessidade social”, defende o PAR.
Este dossiê, assim como a proposta de criação de um voto de rejeição, surgem na sequência da polémica com André Ventura e da reação de Aguiar-Branco, que defendeu em resposta ao PS que uma bancada “pode”, em tese, dizer que uma etnia é mais “burra ou preguiçosa”, uma vez que o PAR não deve ser um “censor” e que as palavras devem ser julgadas nas urnas.
Perante a censura das bancadas da esquerda, chegou a apresentar uma proposta para ouvir no Parlamento a opinião dos antigos presidentes do Tribunal Constitucional sobre os limites à liberdade de expressão, mas a ideia não reuniu consenso entre os partidos.
Aguiar-Branco quis ouvir ex-presidentes do TC, mas falta de consenso impediu-o