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S. Jorge e o dragão num Volkswagen – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 30, 2024

Há alguns anos, no seu primeiro Dia de Sant Jordi como presidente da Generalitat, o inefável Puigdemont apelou aos catalães para «se fazerem ouvir e respeitar diante dos ferozes dragões – que os há, e muitos! – que nos querem atacar.» Estas palavras soariam bastante razoáveis ​​se os dragões fossem aquilo que Puigdemont afirma, mas temo que ele esteja, nisto como em quase tudo, enganado.

O mundo dos dragões simboliza, nas lendas, algo mais do que o mundo primordial e caótico do instinto – é sobretudo o mundo das riquezas da infância e da vida. Nele se escondem os tesouros do desejo, da fome de viver. Os dragões não representam apenas as forças obscuras da vida, mas também o oculto, tudo o que desconhecemos acerca de nós mesmos. É por isso que as lendas nos pedem para nos aproximarmos deles, porque a gruta em que vivem é o nosso próprio coração. «Quem sabe se todos os dragões das nossas vidas – escreve Rilke – não são princesas que desejam apenas ver-nos belos e corajosos uma vez. Talvez tudo quanto de terrível existe não seja, no final de contas, mais do que um desvalido que nos pede ajuda.»

G. K. Chesterton costumava dizer que o dragão já existe no interior da criança e que as histórias mais não fazem que oferecer-lhe um cavaleiro que lhe permita negociar com ele. Em suma, ambos precisam um do outro. Em Maio de 1982, Julio Cortázar e Carol Dunlop viajaram pela autoestrada Paris-Marselha num Volkswagen vermelho. Foi a viagem de dois amantes pelos mundos mais escondidos dos caminhos, e foi esta atmosfera de conto de fadas que fez com que Cortázar visse o seu carro como um pacífico dragão. É assim que ele conta o seu primeiro encontro com o seu Volkswagen: «Trouxeram-no fresquinho de um stand e quando ele me confrontou vi a sua grande cara vermelha, os olhos baixos e brilhantes, um ar entre o indómito e o garboso, um simples clique de espírito e fizera-se dragão e não um qualquer, mas Fafnir, o guardião do tesouro dos Nibelungos, que […] sempre me inspirou uma secreta simpatia, quanto mais não fosse por estar condenado a morrer às mãos de Siegfried, e essas coisas não as perdoo aos heróis, como trinta anos antes não perdoara Teseu por ter matado o Minotauro».

O dragão de Cortázar, mais do que uma criatura feroz, faz lembrar aquele outro, ainda mais encantador do quadro S. Jorge e o Dragão, de Paolo Uccello, exposto na National Gallery. Nele, o temível dragão é apenas um animal de estimação que a princesa leva por uma trela verde. S. Jorge fere-o com a sua lança, e sob a sua cabeça prostrada pelo golpe forma-se uma poça de sangue. Não há medo na princesa, nem qualquer atitude de quem se sente resgatada, mas antes perplexidade e espanto pelo que acaba de acontecer, como se censurasse o herói por ter intervindo tão abruptamente numa história que não era de todo a sua. Na verdade, porquê matar dragões quando devemos viver com eles? É a isto que Cortázar se refere quando fala do seu pouco amor por cavaleiros que, ansiosos por demonstrar o seu valor, insistem em matar estas criaturas para salvar princesas, que na realidade não querem ser salvas.

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Matar o dragão, levar a sua cabeça até à cidade, é muito menos interessante do que tentar perceber porque é que as princesas das lendas insistem em ir até às suas grutas. Não é bom deixar este assunto dos dragões nas mãos dos heróis, pois ao contrário das princesas, que estão sempre a meter-se em sarilhos e a ouvir o que não devem, os heróis destas mesmas lendas não querem ouvir ninguém, a não ser eles mesmos e os seus próprios desejos. O dragão simboliza a heterogeneidade do Ser, e a sua miraculosa permanência é uma cura para o nosso coração, pois propicia a nossa relação com o Outro. A nossa relação com a floresta, com os animais, com os sonhos, mas também com tudo quanto é diferente: o bárbaro, o sexo, o estrangeiro, o servo, as crianças. O mundo do dragão e o do feminino são complementares, pois o feminino não é mais do que aquela disposição para contar e ouvir incansavelmente. O herói recorre ao amor para dizer o que fará, a princesa para ver o que lhe acontece. Um quer sair mais forte; a outra, transformada. É por isso que as princesas procuram dragões – em busca de uma verdade mais rica e gozosa do que aquela que os heróis têm para lhes oferecer.

Há um conto das Mil e Uma Noites que fala justamente sobre como é desaconselhável contentarmo-nos com uma meia verdade: um viajante vê uma bela jovem no mercado. Vive retirada no seu palácio por causa de um sonho que todas as noites a assombra. Neste sonho, um casal de pombas voa pelo campo. O macho é apanhado nas redes de um caçador e a fêmea ajuda-o a fugir; no entanto, quando é ela a prisioneira, o seu companheiro não a vem procurar. Este é o sonho e a razão pela qual a jovem se proibiu de se apaixonar por qualquer homem – para evitar um dia ver-se abandonada. O viajante contrata dois pedreiros e nessa noite compõe um mosaico no muro do jardim da jovem inspirado naquilo que acabara de ouvir. E quando ela o encontra de manhã, diz à sua serva: «Não compreendo, esta é a história do meu sonho». Há, contudo, um pormenor que não faz parte deste sonho: um falcão carregando uma pomba nas garras. E a serva, depois de o identificar à ama, diz-lhe que devemos ter muito cuidado com os sonhos porque muitas vezes eles nos enganam. «Vê», acrescenta, «uma ave de rapina matou o macho que pensavas ter fugido por cobardia». E a jovem compreende então que a verdade que procuramos com tanto zelo nunca cabe num único sonho.

É possível que um dragão sem o seu cavaleiro se possa transformar em algo bastante intratável, mas fala-se muito pouco sobre quão insossos podem ser os povos se os dragões desaparecerem. Representam o outro, tudo aquilo que, sendo diferente do que conhecemos e somos, ao mesmo tempo nos questiona e nos completa. É claro que os independentistas têm o direito de sonhar, mas equivocam-se se pensam que a verdade desse povo que dizem representar se enquadra naquele sonho que defendem com tanto rancor. «Falta povo, sabe?», escreveu Paul Klee. Falta povo e, no entanto, todos falam em seu nome. E, se não existe povo, é porque o mundo dos dragões e tudo o que eles representam foi infelizmente apagado da face da terra. Recuso-me a acreditar que seja um mundo assim aquele que Puigdemont deseja para o seu povo.





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