Conforme a doença do pai de Natalia avança, cada momento ganha contornos definitivos: a última viagem, a última gargalhada, a última ida ao teatro. São coisas absolutamente concretas e pessoais, mas, ao mesmo tempo, com as quais facilmente nos identificamos.
Sim, e não só no luto pela morte. A morte não acontece só no fim da vida. A morte como limitação está diante da gente, interpelando a gente o tempo todo. Até nos relacionamentos amorosos, a gente volta para pensar: nossa, não sabia que era a última vez que isso ia acontecer. Ou cada vez que a gente tem que fazer uma escolha: o que a gente não vive e o que a gente deixa de viver é tão importante para a nossa vida quanto que a gente vive. Os fins e as perdas são tão constituintes da gente quanto o que a gente conquista, o que a gente consegue. O que a gente não tem é muito parte da gente também.
O livro fala também da ideia de tempo. Escreve: “É sempre tão pouco tempo perto do nunca mais, e nunca mais é tanto tempo”. Lembra um pouco o Corvo, de Edgar Allen Poe, onde se repete: “Nunca mais. (Never more, no original)”.
Não tinha pensado exatamente nele, mas gosto. Tem muitas referências no livro, a personagem inclusive leu Morreste-me (2009, Quetzal), que é o livro do escritor português José Luís Peixoto. Li esse livro de facto quando estava com meu pai no hospital. O Edgar Allan Poe não estava como referência direta, mas acho que é um verso que está assim entranhado na gente e no nosso imaginário. Mesmo que não seja uma referência explícita, direta, com certeza tem algo disso, assim como de outros clássicos.
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É numa passagem já quase no final do livro que nos deparamos com o título: “É preciso ser rápida, é preciso saber que o tempo de uma vida é pouco, é preciso estar pronta para escutar as pequenas chances que o passado dá de ser visto por nós do presente, o futuro do que já foi.” Há uma urgência de aproveitar essas chances, esse tempo que resta?
Sim. Principalmente agora, que estou escrevendo um livro sobre a minha mãe. Tem gente que fala que minha mãe aparece muito pouco nesse livro. Ela aparece pouco mesmo porque ela vai ter o livro dela, mas quando ela aparece é muito importante. Esse livro chamava de outro jeito, mas meu editor falou que o título era muito ruim e sugeriu que eu procurasse o título dentro do livro. Aí eu fui ler o livro inteiro procurando o título e estava quase no final. Está aqui! Quando li as pequenas chances, isso saltou para mim, é isso, as pequenas chances! Faz muito sentido, acho bonito e remete para As Pequenas Virtudes da Natalia Ginzburg (1916-1991) que é um livro que adoro também, que fala sobre escrita e também sobre perda. Gostei muito
Qual era o título anterior?
Depois. Mas o meu editor falou: “Natália, você tem que achar outro título, Depois não dá!”
“Morrer não deveria ser um verbo. Morrer é o oposto do verbo. Ao morrer, findam-se as conjugações. O tempo verbal”. Sendo um livro sobre o luto, o que há de mais definitivo, o título remete-nos para uma ideia de esperança. Aliás, “chance” consta no dicionário como “possibilidade de alguma coisa acontecer”.
Essa frase que fala, “morrer não deveria ser um verbo, morrer é o oposto do verbo”… Acho que há também uma transformação dessa personagem nesse sentido, numa elaboração do luto. O livro começa com o enterro e termina com um começo.
Com um nascimento.
Sim. O livro também é sobre isso. As pequenas chances falam disso. É um livro sobre a morte, mas para falar sobre a morte a gente tem que falar sobre a vida, assim como para falar sobre sobre a vida… Uma coisa não anda sem a outra.
No livro narra uma busca pelas suas próprias origens e surpreende-se ao conhecer o apelido de solteira da sua avó. “Todo um ramo da minha existência, todo um galho da nossa árvore genealógica se abriu com a velocidade de um raio diante de mim”, escreve. O que lhe provocou esta descoberta?
No livro, além da transformação da personagem pela elaboração do luto, há também o surgimento de um interesse pela história da família, justamente quando ela não tem mais como perguntar para o pai nem para a mãe dela. Está no epílogo que a mãe dela, de facto, a minha mãe, tem Alzheimer. Já não consigo mais perguntar para eles. Eu era uma pessoa totalmente desinteressada e aí comecei a perceber que ter nascido no Brasil é um acaso, um acaso total. Tenho primos que moram em vários outros lugares do mundo assim como vários outros judeus espalhados por aí na diáspora.
Foi muito impactante descobrir que eu poderia chamar Goichman, Schneiderman e que, de repente, tem pessoas que são meus primos e primas e que eu não sabia simplesmente porque os nomes das mulheres por séculos foram apagados a cada vez que elas se casavam. Acho que isso agora está mudando, mas é uma questão que me impressionou. Nunca tinha tido a curiosidade de saber qual era o nome dela. Aí vem a questão do parto e da ancestralidade dessa personagem. A ligação com o parto é justamente essa, ela convocou essas ancestrais cujo nome ela não sabia. Na verdade, é o nome dela também. Não saber o nome e a história dessas mulheres é não saber a história dela mesma. É isso que a personagem e eu fomos entendendo.