Quando entrou na sala de conferências do Jamor após a conquista da Taça de Portugal, Sérgio Conceição tinha a seu lado não só Rui Cerqueira, diretor de imprensa do FC Porto, mas também um dos seus adjuntos, Siramana Dembelé. Entrou com o técnico principal, pediu licença sem um destinatário em concreto para se sentar na primeira fila, saiu quando o número 1 abandonou o local. Ali, naquele momento, parecia a imagem mais natural possível. Agora, com quase uma semana de distância, não deixa de ser normal mas pode ser alvo de variadas interpretações. Este é o atual estado do universo azul e branco, onde qualquer gesto ou palavra sujeita-se a ser interpretado das mais variadas formas. E assim se foi desenvolvendo mais uma “novela”.
Ponto prévio: mesmo sem declarações públicas nesse sentido, o início da vigência de André Villas-Boas no FC Porto, primeiro como presidente eleito e empossado do clube e a partir de terça-feira como líder da SAD dos azuis e brancos, tem sido ainda mais agitado do que a agitação esperada durante a campanha em caso de vitória. Alguns momentos desportivos de sucesso, como a vitória na Taça de futebol ou o triunfo no jogo 1 das meias-finais do Campeonato de hóquei em patins (ambas contra o Sporting), acabam por funcionar como um bálsamo mas não passam de algumas horas com respostas entre dias com demasiadas perguntas.
Foi noticiado que o presidente do FC Porto tinha assegurado o pagamento dos salários em atraso de abril no futebol e que, antes da final da Taça de Portugal, chegou-se também à frente por um prémio em atraso ainda relativo a um encontro da Champions. No entanto, segundo sabe o Observador, houve muitas mais questões a resolver sem margem de manobra desde que os novos dirigentes assumiram as pastas, não apenas ligadas à mola real do clube a nível de receitas mas também às modalidades que, em vários casos, estão num período decisivo das respetivas temporadas. Em termos internos, tem existido compreensão na necessidade de tempo para solucionar todas as questões apresentadas mas os problemas continuam lá. Agora, há mais um.
O ponto de partida para a história começa entre segunda e terça-feira, após a conquista da Taça de Portugal no Jamor. Quando a equipa foi entregar o troféu ao Museu do clube, num dia que coincidia também com a despedida de Pinto da Costa da liderança da SAD (a única ligação que tem agora ao FC Porto, além de sócio, é ser membro do Conselho Superior por inerência), foi visível um ambiente mais tenso do que era suposto num momento como o que estava a ser celebrado. Mais tarde, e pela primeira vez, o assessor de Sérgio Conceição, Francisco Empis, falou publicamente sobre a situação do técnico, questionando as interpretações feitas às palavras de André Villas-Boas que soavam a despedida. Aí começavam os primeiros sinais de que algo não estava bem e que uma possível saída de forma amigável era um cenário que se começava a esfumar.
Só na terça-feira é que Vítor Bruno comunicou em termos “oficiais” o desejo de prosseguir a carreira como técnico principal a Sérgio Conceição. Não foi propriamente uma surpresa, teve um timing que causou alguma estranheza. Quando foi assinada a renovação por quatro anos ainda com Pinto da Costa como presidente, a dois dias das eleições do FC Porto, os adjuntos não fizeram um prolongamento dos respetivos vínculos mas também não existiu qualquer conversa nesse sentido. No dia seguinte, num encontro com André Villas-Boas, o facto de o atual presidente dos dragões colocar em cima da mesa de forma aberta a possibilidade de poder contar com Vítor Bruno para a próxima temporada foi a gota que fez transbordar o copo, de tal forma que o próprio Sérgio Conceição não demorou a acabar aquele encontro agastado com o que ouvira.
Ao longo das últimas semanas, e enquanto foi percebendo junto dos seus representantes as abordagens que eram feitas por clubes estrangeiros (com o Marselha à cabeça, sendo que a possibilidade AC Milan acabou por começar a cair com a previsível aposta em Paulo Fonseca), Sérgio Conceição ia tentando perceber que tipo de movimentações iam sendo feitas pelos atuais dirigentes em termos futuros. As informações que ia recebendo, de vários lados, apontavam para opções não portuguesas. Ou seja, a hipótese de Vítor Bruno ser o próximo treinador do FC Porto pura e simplesmente não existia. Agora, é uma realidade. E para o técnico que liderou os azuis e brancos nos últimos sete anos é tudo menos obra do acaso. Sentiu-se traído.
É um sentimento mútuo. Sérgio Conceição considera que foi alvo de uma traição por parte do número 2 que o acompanhava há mais de uma década (entre Olhanense, Académica, Sp. Braga, V. Guimarães, Nantes e FC Porto desde 2017), acreditando mesmo que as movimentações de Vítor Bruno para a “emancipação” da sua equipa técnica terão contado com “ajudas” dos atuais dirigentes. Mais: ficou com a perceção de que todas as notícias que têm saído vêm de dentro do clube. Por seu turno, Vítor Bruno considera o mesmo ainda sobre o momento de renovação em que não foi considerado – algo que não faria muito sentido, confirmando-se que há muito decidira que queria começar uma carreira como principal. É verdade que foi abordado por Antero Henrique para assumir um projeto no Qatar como aconteceu com Rui Faria, antigo adjunto de José Mourinho (e que recusou), é verdade que foi recebendo várias abordagens em termos internos ainda como adjunto do FC Porto, não será verdade que tinha algo “acordado” com os atuais dirigentes da SAD.
É aqui que o conflito pode chegar ao FC Porto. Até terça-feira, desde que não se sentisse “empurrado” para deixar o clube, Sérgio Conceição estaria disposto a avançar com a carta registada para a rescisão de contrato sem encargos para os azuis e brancos (e o montante total das quatro temporadas teria um valor superior a 25 milhões de euros). Agora, perante tudo o que vai sabendo e tomando conhecimento, a situação pode mudar, passando no limite para os seus advogados ou para o seu agente, Jorge Mendes. É esse cenário que Villas-Boas quer evitar a todo o custo, não só pela vertente financeira mas também pela importância de uma saída airosa após tudo o que o técnico conseguiu alcançar. Andoni Zubizarreta tem estado à margem de todo o processo, ao passo que Jorge Costa começa “em funções” a 100% apenas a partir de segunda-feira.
A par disso, gerou-se um outro “problema”. Durante esta sexta-feira, e perante as notícias que foram vindo a público sobre essa traição de Sérgio Conceição com os seus adjuntos no momento da renovação, os próprios membros da equipa técnica vieram publicamente desmentir a informação à exceção de Vítor Bruno.
“Não termos assinado não tem nada a ver com o Sérgio [Conceição] mas com a administração anterior. É tudo completamente mentira. Aliás, o presidente, quando assinou com o Sérgio, foi ao nosso departamento, onde estávamos todos os adjuntos, eu, o Vítor [Bruno], o Dembelé, o Eduardo [Oliveira], o Vedran [Runje], e disse que nós íamos assinar na segunda ou terça-feira seguinte. Estou há 13 anos com ele e é capaz de tirar do dele para nos dar. Quando viemos para o FC Porto, veio ganhar menos da metade do que ganhava em Nantes e fez questão que os adjuntos viessem ganhar o mesmo. Vítor Bruno? Ele disse na cara do Sérgio que ia para o Qatar. Sérgio está surpreendido? Está ele e estou eu. Ainda por cima sabendo que o chefe dele tinha assinado um contrato, vai fazer um acordo com o clube? Primeiro faz um acordo com o clube e só depois é que transmite ao Sérgio que quer seguir sozinho”, referiu Diamantino Figueiredo ao jornal O Jogo.
“O Sérgio Conceição não traiu ninguém, o Sérgio Conceição foi sempre muito direto, muito frontal, sempre tratou muito bem de nós, pensou sempre em nós. Quando estávamos no Nantes e quando era para vir para o FC Porto, ele exigiu que os adjuntos ficassem com o mesmo ordenado e ele baixou o ordenado dele para nos permitir ter isso. Da minha parte e da restante equipa técnica, o Sérgio Conceição foi sempre muito claro, sempre muito sincero e sempre, sempre tratou de nós antes de tratar dele. A tratar dos contratos, foi sempre igual. Era sempre a tratar das coisas em primeiro e, depois, com a palavra dada pelas pessoas que mandavam no clube, nós acompanhávamos sempre o Sérgio. Desta vez, ele fez o mesmo procedimento, só que desta vez não se fez, porque [ndr: Pinto da Costa] não ganhou as eleições”, disse Dembelé ao Maisfutebol.
Na sequência dessas entrevistas, a FC Porto SAD fez um comunicado. “Tendo tomado conhecimento de entrevistas e declarações prestadas por determinados funcionários do clube, integrantes do corpo técnico da sua equipa principal de futebol, publicadas hoje em diversos órgãos de comunicação social, deu já instruções internas para que se iniciem os procedimentos tendentes a avaliar da relevância disciplinar das mesmas. Com efeito, poderão estar em causa, entre outros, a violação dos deveres de urbanidade, respeito e lealdade para com a Entidade Patronal, mas também para com outros trabalhadores, designadamente em face do teor potencialmente atentatório da dignidade pessoal e profissional de profissionais do Grupo, colocando em causa o bom funcionamento da Organização”, defendeu o texto dos azuis e brancos.
Estava feita uma espécie de “primeira defesa” de Vítor Bruno, que ao início da noite iria também tomar uma posição pública através de um longo comunicado partilhado nas redes sociais. “Nunca traí (‘apunhalei’ pelas costas, como de modo ardiloso se pretende inculcar) ou, por qualquer modo, fui desleal com o treinador principal Sérgio Conceição, com quem usei sempre da maior lisura, transparência e honestidade, impondo-se agora clarificar a verdade dos factos”, começou por dizer o antigo número 2 da equipa técnica.
“Fui sondado sobre a possibilidade de treinar, a título principal, uma equipa num campeonato fora de Portugal, ao que a minha resposta foi peremtória, no sentido de haver abertura para discutir essa possibilidade existindo o compromisso de conversar com o treinador principal Sérgio Conceição a esse respeito. Tal assunto foi conversado de forma elevada, calma e civilizada entre mim e o treinador principal Sérgio Conceição, no início desta semana. Compreendendo este perfeitamente as razões por mim avançadas para o assumir de uma equipa a título principal, aceitou a minha decisão – e desejou-me os maiores sucessos. Em função disso, encontro-me a avaliar várias possibilidades quanto ao futuro profissional – relativamente ao qual reservo a minha liberdade de escolha, cabendo a mim em exclusivo a decisão sobre o mesmo”, diz.
“Toda a demais narrativa que terceiros mal-intencionados estarão a tentar construir e inculcar é eivada de absoluta má fé e totalmente falsa. Não passando de uma campanha orquestrada com o único e declarado propósito de me difamar, de me caluniar, procurando por todos os meios assassinar o meu carácter, a minha reputação e o meu bom-nome, o qual vem sendo construído há quase duas décadas no mundo do futebol. Mercê das ofensas e calúnias totalmente imerecidas de que tenho sido alvo e vítima, sinto-me injustiçado, vendo a minha família perturbada e em sofrimento diário e permanente, quando sei que nada fiz de errado ou que possa justificar a campanha maquinada contra mim – urgindo, como tal, manifestar o meu frontal repúdio pelas ‘notícias’ que vieram agora a público e às quais nesta sede se responde (isto, sem prejuízo de, a seu tempo e caso assim o considere necessário e pertinente à defesa da minha honra, reagir às mesmas em sede judicial)”, adiantou também Vítor Bruno na longa mensagem.
“Por último – e aproveitando a oportunidade –, sublinho que nenhuma das ‘notícias’ surgidas nos últimos dias, alegadamente citando pessoas das minhas relações (as denominadas ‘fontes próximas’), apresentam qualquer fundo de verdade: não fiquei minimamente melindrado (pretensamente, teria considerado esse facto como uma ‘traição’, o que não corresponde, de todo, à realidade) com a circunstância de o treinador principal Sérgio Conceição haver renovado contrato com o FC Porto, ao invés da restante equipa técnica. Em momento algum, tal circunstância teve alguma relação com a minha decisão de seguir um caminho distinto da aludida equipa técnica – nada tendo eu que ver com o ‘lançamento’ de tais notícias, as quais são absolutamente destituídas de sentido ou fundamento”, completou o antigo adjunto.
Pouco depois, também a família Conceição reagiu a toda a polémica. “Às vezes, ajudar as pessoas só serve para revelar a ingratidão delas”, escreveu Rodrigo Conceição, jogador com ligação ao FC Porto que esteve emprestado ao Zurique. “Sempre contigo, ontem, hoje e sempre. Sempre fiel aos teus princípios, leal, grato e um Homem de respeito para com o próximo. Não vale tudo para chegar ao topo. A ganância e a fome de poder destroem o mundo. Nós homens, seres racionais, nem sabemos a sorte que tínhamos em sermos comandados pelos animais. Seres fiáveis e amáveis”, destacou Liliana Conceição, mulher do técnico.
Os futuros capítulos podem ou não surgir este fim de semana mas decisões, essas, deverão estar apenas reservadas para o início da próxima semana, altura em que Villas-Boas e Sérgio Conceição irão reunir para acertar a questão da saída do técnico do FC Porto. Para já, existe uma garantia. Vítor Bruno, não só por uma vertente técnica e de ligação ao plantel para fazer a transição mas também por questões financeiras perante algumas das possibilidades vindas do estrangeiro que estavam em cima da mesa, não é apenas um nome na lista do presidente portista – é “o” nome na lista do presidente portista. E, nesta fase, o cenário menos provável é que caia das opções de Villas-Boas, faltando depois apenas juntar a “sua” equipa técnica.