Um dos heróis do rapaz é Tyler The Creator, razão pela qual partilhei com ele que o meu editor me dissera que CHROMAKOPIA, o álbum mais recente do rapper, tinha chegado ao 1.º lugar das tabelas de vendas em Portugal. “Mas quem é que ouve Tyler em Portugal?”, ouvi-me dizer, como que pensando alto. A resposta foi: “Toda a gente. Toda a gente conhece o Tyler”. Por toda a gente entenda-se: toda a gente que ele conhece, o que – em termos de amostragem – significa 20 adolescentes brancos e razoavelmente privilegiados, ou seja, o círculo de amigos e conhecidos do meu garoto que se interessam por música.
Não é uma grande amostra, dir-me-ão – mas é melhor do que a minha; eu não conheço mais que umas cinco pessoas que seguem a obra de Tyler. No fundo, eu andava a levar o copo ao mar e a recolher a minha amostra junto à orla, esquecendo-me que há sempre peixes novos. É que talvez a imagem que tenho de Tyler na minha cabeça não seja a mesmo que os miúdos têm – quando ele apareceu, com Goblin, em 2011, rapava (na faixa de abertura, homónima ao disco) “I’m not a fucking role model / I’m a 19 year old fucking emotional rollercoaster” e o “19 year old” nunca me abandonou.
Havia uma faixa nesse disco que tornou Tyler uma espécie de mini-celebridade entre as pessoas mais atentas às novidades musicais: era Radicals, em que depois de avisar as pessoas para não fazerem o que ele vai rappar, Tyler rapa, sobre um beat sujíssimo, “Kill people / burn shit / fuck school”. O tema era admirável, mas criava-me ambiguidade: o talento era inegável, a produção lo-fi apelativa, a provocação do refrão fazia-me rir mas ao mesmo tempo parecia-me coisa de garoto.
[o vídeo de “NOID”:]
Não que me surpreendesse que ele escrevesse um refrão assim – ao fim e ao cabo Tyler surgira anos antes no meio dos Odd Future, um coletivo que era conhecido pelo seu imaginário violento, muitas vezes de forma gratuita (há várias rape jokes nos seus primeiros versos, por exemplo). Quem fez parte dos Odd Future e rapa “Kill people / burn shit / fuck school” não é nem nunca vai ser uma mega-estrela, pensei – e desde esse dia até hoje, mesmo ouvindo tudo o que Tyler fez e notando as sucessivas mudanças sonoras da sua obra, ele permaneceu na minha cabeça como um provocador – e nunca me ocorreu que entretanto ele tivesse sido adotado por quem mal era nascido quando começou a fazer música (estou neste momento a fazer rezas a deuses obscuros da antiguidade para que os miúdos de hoje, incluindo o meu, não ponham em prática o raio do refrão supra-citado).
CHROMAKOPIA está no topo dos discos mais vendidos da Billboard pela segunda semana consecutiva – e esta não é a primeira vez: em, 2021, com Call Me If You Get Lost, também esteve duas semanas no topo, embora não tivessem sido consecutivas; dois anos antes já passara uma semana no lugar cimeiro, graças a IGOR, que é (muito possivelmente) o meu disco preferido de Tyler (e do meu filho, já agora).
Primeiro és o garoto novo no bairro, provocador, desbragado, mas não propriamente aceite, e um dia, quando dás por ela, és popular e os putos todos querem ser como tu – não é a primeira nem será a última vez que esta história se repete na música (digamos) pop. Em janeiro de 2020, IGOR valeu a Tyler o Grammy de Melhor Disco Rap, o que não o deixou contente; é que IGOR podia ter um tipo a rapar mas canções como EARFQUAKE transcendiam o género, ao mesmo tempo que resgatavam outras tradições (como a soul).
[um vídeo sobre a gravação de “CHROMAKOPIA”:]
Quando subiu ao palco, Tyler foi claro: o prémio deixava-lhe um amargo de boca porque Tyler nunca se sentira aceite no meio do rap. Se quisermos ser precisos, ele também nunca foi estritamente um rapper – e é nisso que se reside a sua magia. A sua música está cheia de alusões a outras músicas, ao ponto de o New York Times descrever Call Me If You Get Lost como “uma conversa com a pop da década de 60, a chanson française e a soul e o funk acústicos”.
Podia facilmente acrescentar-se que Tyler tem um ouvido danado para melodias, algo que é claro em RUNNING OUT OF TIME, de IGOR, ou em See you again, de Flower Boy (2017), para citar apenas as mais óbvias. Isto sem nunca deixar de experimentar – um dos aspetos mais fascinantes acerca de Tyler é que, ao contrário de alguns rappers, que são sobretudo intérpretes e o que valorizam no hip-hop é o flow do rapper, Tyler tem uma predileção por beats esquisitos, que combinem sons do passado com sintetizadores sujos ou arranjos cuidados – nada nele se reduz a um beat e rapar.
Os esforços de Tyler para ser mais que um rapper não se de agora, contudo – a primeira vez que ele procurou afastar-se da persona que inicialmente criou (um provocador idolatrado pelos putos que passavam demasiado tempo na internet) foi com Wolf, de 2013: Erykah Badu e Pharrell Williams eram convidados e tanto Domo23 como Lone soavam a Neptunes e estavam cheias de metais e acordes jazzy – algo surpreendente para quem em 2015 fora proibido de entrar no Reino Unido, porque a primeira-ministra Theresa May tinha medo das suas letras.
[“THOUGHT I WAS DEAD”:]
Cherry Bomb, de 2015, tinha uma vibe punk-rock, numa demonstração de que nenhum som era anátema para Tyler – isto apesar de ser, provavelmente, o mais mal-amado dos discos de Tyler. O sucessor, Flower Boy, era muito mais lascivo e luxuoso – em Where This Flower Blooms ele rapava “Tell these black kids they can be who they are” e isto já não era bem um verso de um outsider, antes de um alguém mais amadurecido, que sabia que tinha seguidores e responsabilidades.
Mas, e correndo o risco de ser chato, é em IGOR que Tyler atinge o seu zénite, e digo isto com todo o respeito por Call Me If You Get Lost. É aí que ele se liberta definitivamente da violência do início da carreira e dá asas a toda a musicalidade que germinava dentro de si. Em várias entrevistas, Tyler contava que ouvia sempre duas horas por dia, por prazer mas também à cata de sons para samplar. Duas horas por dia, todos os dias, durante anos permite ouvir muita música diferente e toda essa música diferente surge em fundo nos magníficos instrumentais de IGOR (obra-prima).
CHROMOKOPIA também confere uma nova matiz a Tyler – se em discos anteriores o seu pai era tema de canção pelos piores motivos (ter abandonado o filho, por exemplo), no novo disco ele regressa ao tema, mas para fazer as pazes – em Like him a mãe de Tyler diz ao filho (que está cheio de medo de cometer os mesmos erros do pai) que o pai não o quis abandonar e foi ela que o forçou a afastar-se. Tyler declara tréguas à eterna guerra com o pai.
Que os putos – e são sempre os putos a escolher o nº 1 das tabelas de vendas – tenham uma personagem tão complexa e claramente inteligente como Tyler é como herói, bom, isso dá-nos alguma esperança na humanidade.