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um país para inglês ver  – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 27, 2024

Já sabíamos que Portugal estava em emergência…mas só quando há mortes é que parece haver um problema. Vem isto ainda a propósito do INEM e das 11 mortes que se lhe relacionam. É claro que a falta de médicos de família no SNS e o adiamento de consultas também mata (2024 foi o primeiro ano que a esperança de vida subiu em 2 triénios (2019-21 e 2020-22!) só que mata devagar (ficámos no pior lugar num estudo sobre qualidade de vida na velhice que envolveu cinco países europeus). Já a injustiça, que é uma forte doença social, também mata e não é pouco. Veja-se só este dado: das 25 mulheres assassinadas este ano 6 já tinham feito queixa à polícia. Pelo menos estas 6 foram mortas também pelo Estado. A própria educação também mata. Desde logo faz com que os jovens, cada vez mais filhos únicos (é o país da EU em proporção com mais filhos únicos) tenham de emigrar (o país da Europa com mais emigração e o 8.º no mundo!) em vez de ficar também perto ou mesmo a cuidar dos mais velhos.

A emergência portuguesa não é do INEM e não é só o INEM que mata. A Administração Pública como um todo deveria ser objeto de uma missão de Redesign. Tal deveria ser um objetivo político deste governo e um dos objetivos de missão do PLANAPP e do INA. A não ser assim, estamos condenados a que o INEM enquanto síndrome administracional se evidencie em todos os demais sectores onde já encontramos claros sinais da doença.

Álvaro Beleza num comentário que fez à situação do INEM evidenciou bem essa síndrome administracional ao dizer que já se estava a trabalhar em serviços mínimos há muito tempo e que havia uma degradação de lideranças, de serviços e de valores. E é curioso, e trágico, que as soluções que vão sendo apresentadas para o INEM, e para outros sectores, sejam, apenas, mais dinheiro e mais pessoal. Ora a falta de atratividade da Administração pública não tem a ver apenas com dinheiro. Tem muito a ver com toda a degradação referida.

Comecemos pelas lideranças. Está tudo cheio de lideranças cooptadas: nomeados substitutos. Que é o caso do actual Presidente do INEM. Se tal fosse uma excepção seria aceitável, mas não é! E é com grande à vontade que a ministra diz que acabou de se abrir concurso ao qual este Sr. irá concorrer, potencialmente para ganhar, até porque já ganhou alguns pontos por ser nomeado substituto! Tudo isto é dito normalmente pela ministra sem qualquer hesitação. Ora é aqui exatamente que começa a degradação. O líder de uma instituição (independentemente do seu mérito) está já refém de uma escolha política quando a política teria de escolher de entre três possíveis, o que tornava o escolhido um líder desde logo mais independente. E o seu mérito, a tê-lo, seria mais claro. Agora, quem é que se vai candidatar quando o escolhido já lá está?! Se a CRESAP não serve para nada, se os concursos em Portugal, na Administração Pública em geral, não são senão nomeações premeditadas e mais ou menos encapotadas ou encenadas em função de um qualquer diretor de cena (seja ministro, secretário de Estado, Director Geral, Diretor de Instituto Público, etc.), com um coro e alguns palhaços, das duas uma: ou somos todos estúpidos, ou a certa altura se os concursos para lideranças e para topos de carreira e muitos dos demais são para inglês ver então estamos num país que é só para inglês ver.

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E este sistema, em que os líderes são cooptados repete-se como exemplo em matrioska russa ou como se fosse natural: em fractais portugueses. Portanto, nada mais natural que um chefe na administração directa ou indireta do Estado nomear em cadeia todos os elementos da organização que lidera. Nada mais natural que, enquanto líder da instituição, suba ao mais alto nível de carreira sem qualquer conflito de interesses, nada mais natural que escolha o seu próprio substituto! Se em algum caso for mesmo necessário um concurso, claro que se faz o concurso mas a nomeação já existe e informa-se adequadamente os palhaços que são convidados para fazer parte do júri. E estes, confundindo reconhecimento com manipulação, ou por se reverem facilmente no processo ou, por racionalização conformadora (‘- é assim que as coisas se fazem. Não há nada a fazer’), aceitam de bom grado pactuar num processo cheio de ilegalidades. E é tudo tão normal que até juridicamente não é claro que a lei valha mais que o costume corrupto! A inteligência em Portugal dissocia-se da ética claramente, produzindo um país ao mesmo tempo ilegal, mas com aparência de ‘cumprir formalidades’: um país para inglês ver!

Depois os serviços, tal como as lideranças, seguem um sistema para inglês ver. Ou seja, há vários profissionais (do INEM, médicos, enfermeiros, professores, etc) que têm determinado horário de trabalho mas, de facto, são obrigados por lei a fazer um determinado número de horas extraordinárias. Ora, isso já é de si extraordinário! E parece que ninguém acha verdadeiramente estranho! Depois, por vezes, ainda é solicitado (solicitado é uma forma bonita de se dizer, pois a cenoura e o chicote continuam em uso) que façam mais horas extras do que as que a lei permite! Mas tudo bem na mesma. Podemos sempre perguntar porque é que o funcionário então não faz queixa a ACT (Autoridade das Condições de Trabalho) ou IGAS (Inspecção Geral de Saúde) ou à IGEC (Inspecção Geral de Educação e Ciência). Bom, por um lado, há em todas estas profissões um sentido de missão e de vocação que favorece as lideranças, mesmo quando são más, e predispõe as pessoas a darem mais de si. Por outro lado, as más lideranças aproveitam essa debilidade, e muitas outras, para entalar mais os profissionais. Por outro lado, para um funcionário fazer queixa em Portugal é porque já estamos numa situação de conflito evidente porque o funcionário quando se queixa já perdeu!

Mas a questão das horas extraordinárias é apenas um exemplo. Toda a Administração Pública continua a funcionar por silos. Tal como os líderes máximos são cooptados, também há indivíduos e grupos que encontram, em determinados objetivos estratégicos, a sua carta de alforria dentro da instituição. Nos dias que correm, há silos ligados a processos antigos, sobrevivências que já deviam ter desaparecido e subsistem em função de pequenos poderes. Por outro lado, a transição digital é também um desses filões. Estar à frente da transição digital, em algumas instituições, possibilita quase tanto poder quanto o de um diretor geral. Portanto, há uma luta entre galáxias de gestão de conhecimento: a galáxia Gutemberg e a galáxia algorítmica, ambas com os seus silos próprios e impedindo a progressão da Administração Pública. Se sectores chave da transformação (como a transformação digital por exemplo) fica dependente de uma única pessoa, isto também quer dizer que quando acontece algo a uma dessas pessoas que conseguiu ter um lugar de insubstituível (ou fica doente ou morre ou muda de lugar ou reforma-se…) as coisas param durante meses.

Os exemplos das horas extraordinárias, dos silos, da luta entre dois sistemas de gestão de conhecimento e da dependência da transformação de pessoas específicas, são apenas dos que me parecem mais evidentes de uma série de problemas inerentes aos serviços da Administração Pública. Estas e outras formas de poder e de pequenos poderes proliferam na Administração Pública em Portugal e impedem mesmo, de forma clara, a produtividade. Mas, acima de tudo, criam um sistema em que a aparência de funcionalidade esconde o verdadeiro problema: a hipocrisia – um país para inglês ver!

Como se percebeu claramente, a questão dos valores é, desde logo, despoletada pela forma como as lideranças neste país se estabelecem e pela contínua promiscuidade entre Política e Administração, a qual chega mesmo aos níveis hierárquicos mais baixos da gestão de qualquer organização. Ora, desde logo, as lideranças nomeadas, e todas as suas eventuais toxidades, são claramente vistas pelos funcionários como menos legítimas do que as que resultariam de um concurso sério. A liderança é ilegítima e, em muitos casos, resulta de irregularidades ou mesmo ilegalidades, em relação às quais não houve (e é muito difícil haver) possibilidade de escrutínio efectivo.

Por outro lado, para quem não consegue entrar para um lugar adequado ao seu nível por concurso (e poucos conseguem) o que interessa é, antes de mais, entrar. Assim, há licenciados que entram pelo nível hierárquico mais baixo e depois, encontrando encosto adequado (por vias várias dependendo das histórias pessoais mas quase sempre tudo muito local porque o país é muito pequeno) conseguem pela mobilidade chegar a um lugar. Atenção, muitos deveriam chegar àquele lugar ou até mais alto por valor próprio e outros tantos nunca deveriam ter chegado tão longe.

O que resulta de tudo isto é um sistema de valores em que impera uma constante arbitrariedade resultante de uma clara discricionariedade, uma constante falta de igualdade e uma constante parcialidade. A ética do serviço público está todos os dias a ser posta em causa e todos os dias actos que deveriam ter em conta o interesse público evidenciam um ‘desvio de poder’. A lei, em Portugal, serve essencialmente ‘para cumprir formalidades’, ou seja, para dar um ar civilizado a um país que não o é e em que a maior parte aceita pactuar viver uma farsa num país para inglês ver!

Há muitas pessoas, mesmo aquelas dentro da Administração Pública e, por vezes, mesmo com cargos não menosprezáveis, que não tem uma completa informação e falta de uma completa consciência – diria que, muitas vezes, por negação. Não querem saber como tudo é feito para não se sentirem envolvidos, apesar de estarem: são, portanto, imbecis. No entanto, há vários que têm perfeito conhecimento do que estão a fazer. E aí temos uma completa dissociação entre inteligência e ética!

Como consequência, qualquer jovem com algum talento (e consciência) que entre para a Administração do Estado mal percebe esta situação deseja sair (ainda que não saia) no mês seguinte porque nada pode fazer de facto.  Para quem não consegue comprar o seu silo dentro da instituição, a certa altura, a corda estica demais, e os profissionais saltam fora assim que podem ou, não podendo, sentem-se mal, criam ansiedade e síndrome de burnout e metem baixa. Para aqueles que têm uma perspetiva mais racionalizadora, acomodam-se, mas a produtividade diminui.

Daniel Traça no seu livro Ambição, afirma que Portugal é o único país da União Europeia em que a Educação não correspondeu a um efetivo circuito de acumulação de capital: em que mais talento não propiciou mais rendimento.  Por um lado, há demasiada gente que tem pejo em associar a educação à acumulação de capital como se tal fosse uma heresia quando é exatamente em função dessa consciência que a educação faz sentido, se a queremos relacionar com qualidade de vida individual, lucros das empresas, mais eficiência da Administração Pública e maior produto interno bruto. Por outro lado, de facto, nem o Estado (obsoleto) nem o mercado (de pequenas e médias empresas demasiado familiares) em Portugal conseguem efetivamente dar uso ao talento, quando existe, que sai das nossas universidades. Tal não é possível num país para inglês ver!





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