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um problema sério de saúde pública em crianças e jovens – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Abr 22, 2024

Comemoramos cinquenta anos de democracia e assistimos a um grande desenvolvimento em praticamente todos os setores da vida social e política do país. No entanto subsistem muitos problemas para resolver, nomeadamente nas relações entre a educação, a saúde e a qualidade de vida dos cidadãos. O futuro de Portugal passa, entre outros temas, por dar uma atenção especial à análise da situação do desenvolvimento das crianças e jovens, na família, na escola e na comunidade, quanto às relações entre a sua saúde física, emocional, mental e social.

Numa entrevista ao Observador, em 2015, afirmei que estávamos “a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável”. Passaram nove anos e a situação mantêm-se em níveis ainda mais preocupantes no quotidiano de crianças e jovens. As nossas crianças de hoje não fazem atividades arriscadas, têm tudo pronto na hora, sem tédio e frustração, sem contacto com a natureza, demasiado protegidas, sem autonomia de mobilidade, sedentárias e acompanhadas pelo medo que as rodeia em todos os contextos de vida.

Sabemos que o brincar e ser ativo é uma ferramenta ancestral fundamental no desenvolvimento humano. Brincar é insubstituível em todos os animais e principalmente nas primeiras fases do desenvolvimento. Não é um comportamento secundário, um passatempo, inútil ou dispensável, mas uma manifestação fundamental de expressão, crescimento, sobrevivência, adaptação e educação humana. É uma linguagem universal e um remédio para todos os males. O brincar, o jogo e o desporto são atividades que podem potencializar o desenvolvimento destas competências, considerando-se uma “boa droga” e excelentes antidepressivos no desenvolvimento humano e na maior parte das vezes esquecidas nos diversos contextos de vida, principalmente escolar (onde as crianças passam a maior parte do seu tempo diário).

O relativo baixo custo energético dispendido pelas crianças nas atividades de vida quotidiana (casa, escola e rua) implica um olhar mais atento no desenvolvimento de estratégias de investigação e de políticas públicas de modo a ultrapassar este problema complexo da vida moderna. Esta violência simbólica marca definitivamente os percursos de vida na infância em termos de construção de imaginários, fantasia e aprendizagem social. É absolutamente importante que as crianças tenham uma infância feliz. Não uma infância inventada pelos adultos.

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É necessário compreender o conceito de adaptação biológica, psicológica e social e identificar os constrangimentos a que as crianças estão a ser sujeitas na sua vida quotidiana:

  1. Aumento do envolvimento eletrónico, em que o efeito das novas tecnologias (culturas de ecrã), evoluíram significativamente nas últimas décadas. O tempo passado a ver televisão e vídeo, utilizar telemóveis, jogar jogos electrónicos, utilizar o computador, consultar a internet, contacto com as redes sociais, jogos online, etc, envolve uma grande parte da vida diária de crianças e jovens, criando estados de dependência e de intoxicação digital;
  2. Desaparecimento progressivo da cultura de jogo de rua e contacto com a natureza, colocando as experiências espontâneas de vida das “culturas de infância” em vias de extinção. As ruas desapareceram como local de jogo livre. O brincar no exterior tem sido rapidamente substituído por comportamentos sedentários dentro de casa;
  3. Aumento da densidade de tráfego automóvel, provocando limitações de espaço disponível junto às habitações e na cidade em geral. As crianças com idade inferior a 10 anos não possuem capacidade biológica para terem um comportamento sistematicamente seguro nas ruas, visto não serem capazes de adoptar comportamentos que ultrapassem as limitações impostas pelo seu nível de maturação;
  4. Diminuição do espaço livre em que o fenómeno de urbanização e a reduzida e institucionalizada política de equipamentos de espaços de jogo para a infância não favorecem o desenvolvimento de experiências de jogo e aventura;
  5. Aumento de insegurança e proteção, com a família a alterar os padrões de liberdade na educação dos filhos sobre a frequência de espaços exteriores, diminuindo as margens de risco atribuídas nas actividades de jogo e actividade física. Na maior parte dos casos aumentou o “medo” dos pais em deixarem as crianças sair à rua para brincar com os amigos sem supervisão, assim como o controlo nos percursos de casa para a escola e vice-versa. Trata-se de uma superproteção excessiva que desprotege as crianças no seu desenvolvimento. Andam agarradas pela mão (sem autonomia) e aos ecrãs (dependência);
  6. Aumento da formalidade da vida escolar, com mais actividades curriculares organizadas na escola a par de um menor tempo de actividade livre. Os espaços exteriores (recreios escolares) não são considerados, na maior parte dos casos, como locais de desenvolvimento e aprendizagem motora e social e apresentam muitas deficiências em termos de equipamentos, materiais, qualidade ambiental e supervisão;
  7. Diminuição do nível de independência de mobilidade, isto é, a autonomia de circulação das crianças no espaço urbano alterou-se de forma significativa nos últimos anos (percursos, percepção do espaço físico e possibilidades de ação).

Será importante construir uma visão multidisciplinar nas políticas municipais que permitam: criar cidades ativas, verdes e caminháveis (um novo modelo de planeamento urbano); mais condições de mobilidade autónoma e em liberdade; devolver a rua para todos como local de encontro, festa e lazer (fechar ruas ao trânsito, criar eventos e espaços lúdicos); reduzir o tráfego e transporte automóvel devolvendo o espaço público para atividades promotoras do bem-estar físico, mental, emocional e social); criar espaços verdes e equipamentos lúdicos apropriados às culturas infantojuvenis  e promover um modelo de gestão do tempo escolar, familiar e laboral mais amigo de todos.

As cidades do futuro devem dar mais importância às crianças e jovens, que na maior parte dos casos estão excluídos de participar na construção e na vida urbana. As cidades deverão apresentar projetos participativos para permitir a disponibilidade de “pulmões verdes”, oportunidades de brincar livre, criativo e desafiador, espaços de jogo exteriores inclusivos e naturalizados nas escolas e espaços públicos, lugares de encontro para toda a família, através de um planeamento urbano integrado, dinâmico e participativo.

Carlos Neto foi professor da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. Conta com cinco décadas de investigação e experiência em intervenção comunitária em torno das vantagens da brincadeira e do jogo no desenvolvimento físico e emocional da criança. O académico é membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década. 



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