Ninguém esperava aquele fogo. A Catedral parecia eterna, imune à passagem do tempo, sentinela de uma era passada. Mas aconteceu. De uma penada, as paredes ficaram sem tecto e nós, todos nós, ficámos sem chão.
Aturdidos, vimos as imagens do incêndio. Colunas de fumo e de fogo que subiam, infernais, nas margens do Sena. Vigas robustas e centenárias, roídas pelas chamas e deixadas inanes, no chão, em pilhas de destroços carbonizados. Passantes que se juntavam em grupos, a rezar, a cantar, a chorar a Notre-Dame.
Vivemos, nas semanas seguintes, um certo embaraço colectivo. Muitos duvidavam de que fosse possível reerguer a Catedral. Já se tinham perdido aqueles ofícios, as antigas técnicas e saberes. A flecha central da Catedral, levantada no século XIX pelo genial Viollet-le-Duc, não cabia nos actuais cânones do restauro patrimonial. Fazer novo, com os meios de hoje, mas a imitar os estilos antigos é coisa mal-vista pelo consenso dos especialistas do nosso tempo. O feio, hoje, tem melhor imprensa do que o revivalista.
Alguns arquitectos, mais rápidos do que a própria sombra, propuseram que a reconstrução se fizesse com pináculos de vidro e de aço, apetrechados de painéis solares, hortas urbanas, jardins suspensos e ousados sistemas de aproveitamento de águas. Comentadores e intelectuais sonharam um templo à universalidade e à concórdia, onde coubessem todos os credos, povos e doutrinas e que, sendo de todos, não fosse, na verdade, de ninguém. Um templo às nossas éticas humanistas, ecológicas, tolerantes, modernas e assépticas. Uma espécie de anti-Notre-Dame, mais notre do que Dame. Um templo a nós mesmos e à nossa pretensa superioridade moral.
O tempo, entretanto, foi deitando água na fervura dos disparates. A comoção pública era clamorosa. O fundo para a reconstrução da Catedral recolheu 850 milhões de euros em donativos. Juntaram-se 340 mil benfeitores, de 150 países. As grandes empresas francesas tomaram em mãos o dever de contribuir. Os políticos perceberam que ninguém aceitaria uma Notre-Dame recauchutada, descafeinada, diluída no espírito do tempo. Quem entra numa Catedral, mesmo numa sem tecto, sente o impulso irresistível de olhar para cima. Jamais seria possível uma Catedral horizontal.
Entretanto, as portas da Notre-Dame fecharam, com a promessa de reabrirem em cinco breves anos. Cinco anos. Quando a Catedral fechou, a Europa estava em paz e não conhecera ainda, na Ucrânia, o reacender dos fantasmas da carnificina.
Esteve fechada durante a pandemia, quando as outras igrejas – e as escolas, os teatros, os cafés e as vidas – se fecharam também, em profilácticos isolamentos. Fechada ficou, em silêncio, enquanto nós discutíamos as viagens espaciais de Elon Musk, a viabilidade da Bitcoin e o surgimento do ChatGPT.
Mudámos muito, nestes cinco anos. E acenderam-se no nosso horizonte novos medos, enquanto outros, emersos das profundezas da História, parecem ter regressado para desassossegar a nossa alienação.
Reentramos agora, presencialmente ou em espírito, nas paredes sagradas da Notre-Dame. Afinal, parece que era possível. O solo da França ainda consegue engrossar os troncos dos carvalhos – 2500, para ser exacto – e ainda produz mãos ágeis para os aplanar e transformar em vigas. Ainda há quem saiba soprar o vidro e desenhar vitrais luminosos e coloridos, como aqueles, centenários, que o fogo destruiu. E afinal, ainda há fé. Ainda há povo para amar e povoar uma igreja, estimando-a como casa e não apenas como ponto de interesse cultural.
O restauro lavou das paredes qualquer rasto de fuligem. Não só a do incêndio, mas também a do tempo. O fumo das velas, o incenso, o pó acumulado. Descobrimos a perfeição da forma, que estava oculta por debaixo da incúria dos séculos. Vemos a Notre-Dame com a brancura e a novidade com que a viram as gerações que a inauguraram. Estava tudo lá. Era nosso, tinha-nos sido legado. E nós não sabíamos.
Achávamos que era antigo e ultrapassado. Supúnhamos que não era para nós, que era o rasto de outro tempo. Estávamos enganados. É novo, está vivo, é nosso. Somos nós que ali estamos.
Muita coisa mudou, é certo, nestes cinco anos de clausura. E muito mais mudará, nos tempos que se avizinham. Mas a Notre-Dame, agora reaberta, continua a oferecer-se-nos tal como é, testemunha de que as realidades mais importantes são também imutáveis.
Quanto a mim, espero apenas voltar a encontrar, numa discreta laje do chão da Catedral, junto do segundo pilar, do lado da sacristia, uma inscrição simples: «25 Décembre 1886. Conversion de Paul Claudel. Magnificat». É uma referência ao momento em que o poeta Paul Claudel, atraído para a Notre-Dame em dia de Natal pelo canto do Magnificat, sentiu o toque da Providência.
Mais tarde, em livro, Claudel relata: «num instante, o meu coração foi tocado e EU ACREDITEI. Acreditei, com uma tal força de adesão, com um tal tumulto de todo o meu ser, com uma convicção tão potente, com uma tal certeza que não deixa lugar a qualquer espécie de dúvida. Desde então, nenhum livro, nenhum argumento, nenhum acaso de uma vida agitada puderam abalar a minha fé, nem sequer tocar nela. Eu tive, de um só golpe, o sentimento pungente da inocência, a eterna infância de Deus, uma revelação inefável» (Ma conversion, p. 913).
O nosso mundo precisa destes golpes de beleza, que surpreendem e ultrapassam, à traição, as muralhas espessas do nosso cepticismo. Estávamos mesmo a precisar de ter de volta a Notre-Dame.