As olheiras carregadas de Mazen al-Hamada tornaram-se símbolo da luta popular que encabeçou. Em 2011, durante a primavera árabe, Al-Hamada foi dos fundadores do movimento de protesto na Síria. Foi perseguido, torturado e fugiu para a Europa. Quando voltou, em 2020, foi mais uma vez preso. Terá sido uma das últimas vítimas do regime opressivo de Bashar al-Assad.
Esta quinta-feira, multidões percorreram as ruas de Damasco carregando o caixão de Mazen al-Hamada. Desde a queda do ditador, os rebeldes têm desvendado a destruição que as antigas autoridades deixaram para trás, durante os 13 anos de guerra civil. Na morgue de um hospital militar, no distrito de Harasta, foram encontrados 35 corpos. Os médicos forenses que analisaram a cena consideram que estes provavelmente pertencem de homens encarcerados em Sednaya, conhecido como “o matadouro”, que seria o “centro de uma rede industrial” de prisões do regime.
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Muhammad Jafran, elemento da equipa forense, concluiu que apenas dois dos corpos tinham ferimentos externos, sinal de tortura. Um deles seria o de Mazen al-Hamada, noticia o Telegraph. Os outros 33 prisioneiros terão morrido à fome ou de asfixia, nas celas sobrelotadas de Sednaya. Segundo Jafran, as lesões no corpo de Hamada foram inflingidas ao longo de vários dias e é provável que este tenha morrido na sexta-feira passada, menos de 48 horas antes de Assad ter fugido da Síria. “Não sabemos qual foi o ferimento que o matou, mas sabemos que ele sofreu”, disse o médico.
Partindo da morgue do Hospital Militar, o caixão coberto com a bandeira dos rebeldes sírios e retratos de Mazen al-Hamada foram transportados para o centro de Damasco onde este seria enterrado. “Mazen é um mártir”, gritavam os manifestantes à medida que se iam juntando mais pessoas à peregrinação. No entanto, a marcha não era exclusivamente dedicada a ele. Dezenas de outros retratos foram exibidos durante a manifestação, homenageando outras vítimas do regime da família Assad que desapareceram, ao longo dos anos de repressão. “Nós demos o nosso sangue e suor pela revolução”, cantava-se nas ruas da capital.
Mazen al-Hamada nasceu em Deir Ezzor, a maior cidade do este da Síria, no ano de 1978. Tinha 33 anos quando, em 2011, a sublevação contra Assad começou. “Na Síria, fui um dos fundadores do movimento de protesto“, disse Hamada, citado pela France24.
Trabalhava como técnico na multinacional norte-americana Schlumberger, uma das maiores prestadoras de serviços de petróleo do mundo, quando começou a filmar as primeiras demonstrações públicas contra o regime e a publicá-las nas redes sociais. Em março de 2012, foi detido por agentes de autoridade quando estava num café, em Damasco. Foi transferido para um hospital militar próximo onde se deparou com corpos amontoados em casas de banho e presenciou execuções de outros detidos, como conta no documentário de 2017, Combatendo Assad: As vozes dos desaparecidos da Síria.
“Pegaram em mim, deitaram-me no chão e partiram-me as costelas”, conta no filme. Hamada descreve igualmente as violações e torturas sexuais a que foi sujeito nos 15 meses em que esteve encarcerado. Em setembro de 2013, um juiz concedeu-lhe liberdade e Hamada partiu da Síria, tal como fizeram milhões de outros sírios que se refugiaram na Turquia, no Líbano e em mais países da Europa, durante os anos da guerra civil. Chegou aos Países Baixos, em 2014, onde lhe foi concedido asilo.
Tornou-se um dos refugiados que ajudou a tornar públicos os crimes de guerra que estavam a ser cometidos pelas forças governamentais de Assad. Apoiado por ONG, Hamada esteve na Suíça, em França e Itália a divulgar fotografias tiradas por um antigo polícia sírio, conhecido como Caeser, que testemunhavam situações de violação de direitos humanos dentro de prisões controladas por Assad.
Contudo, “o grande denunciante do regime sírio” não encontrou paz durante o asilo europeu. Khaled Al Haj Saleh, um amigo e companheiro de exílio nos Países Baixos de Hamada, contou à 31mag, em 2021, que este se tornou agressivo para as pessoas à sua volta, à medida que a sua saúde mental se deteriorava. “Como amigo, era cada vez mais difícil estar próximo dele. Não porque eu não quisesse, mas porque não sabíamos mesmo como ajudá-lo”, confessou.
Hamada isolou-se e tornou-se obsessivo. Fazia transmissões em direto nas quais abordava a situação no seu país, mas Saleh diz que o amigo acabava por apenas gritar os seus “pensamentos desconexos”. Terá começado a adotar uma retórica contra os curdos, a minoria étnica no país, e acabou mesmo por ser despejado do seu apartamento por não pagar a renda durante vários meses.
Acumulando problemas e sentindo que a luta pela libertação do povo sírio o obrigava a voltar onde começou, o ativista planeou a viagem de regresso a Damasco. “O governo disse-lhe que teria um acordo e que ficaria em segurança. Também lhe disseram que a sua família seria presa e morta se não voltasse”, disse a irmã Lamyaa, à BBC. Ao contrário do prometido, Hamada foi preso mal aterrou no aeroporto da capital síria e só voltou a ser visto esta terça-feira, dois dias depois da libertação, quando foram encontrados os 35 corpos no hospital militar.
“Peço desculpa por não te ter conseguido salvar”, escreveu Mouaz Moustafa, diretor da Syrian Emergency Task Force, uma organização sem fins lucrativos sediada nos EUA. Esta foi mais uma das demonstrações de carinho em relação a Hamada, agora apelidado de “mártir da liberdade” por Moustafa. “Espero que, no céu, saibas que estamos livres”, afirmou.
I’m sorry I couldn’t save you. I hope you know in heaven that we freed #Syria after all. My friend brother and work colleague at @syrianetf a martyr for freedom pic.twitter.com/8YIHynfY4J
— Mouaz Moustafa (@SoccerMouaz) December 10, 2024