“Vasco da Gama é homem de meia estatura, um pouco envolto em carne, cavaleiro de sua pessoa, ousado em cometer qualquer feito, no mandar áspero e muito a temer na sua paixão, sofredor de trabalhos e grande executor no castigo em qualquer culpa por bem da Justiça” – descrição da personalidade de Vasco da Gama feita pelo cronista João de Barros in Vasco da Gama: o Homem, a Viagem, a Época, de Luís Adão da Fonseca.
Houve um tempo em que os portugueses conquistaram o mundo, não apenas pela sua audácia, mas munidos de uma mensagem e de um ideal que fez de alguns dos nossos, personagens maiores. Faz hoje quinhentos anos que morreu Vasco da Gama, homem rude, grosseiro, e até violento, mas que pela sua genialidade, persistência e integridade deixou marcado o seu nome na História.
Não sou historiador, mas aprendi a conhecer e admirar muitas das personagens das Descobertas pela mão do meu pai, que deixou para memória futura, entre outras obras, um relato exaustivo e profundo sobre Vasco da Gama: o Homem, a Viagem, a Época, publicado em 1997, por ocasião da Expo 98. O livro, há muito esgotado, está acessível em alfarrabistas e em repositório aberto, para download, aqui. Tentar compreender a História à luz de uma época é um exercício fantástico que nos convida a mergulhar nas contradições que as personagens nos inspiram, desde admiração ao mais puro repúdio, sendo Vasco da Gama, seguramente, uma das figuras mais polémicas e paradoxais que me foi dada a conhecer.
Hoje, ao recordar os quinhentos anos da morte deste navegador que uniu vários mundos, pergunto-me como é possível que, passados cinco séculos, tenhamos falhado tanto em honrar o seu legado.
Ontem, o Conselho Constitucional de Moçambique proclamou os “resultados” das eleições presidenciais e legislativas, num processo eleitoral marcado – para não fugir à tradição – por denúncias de fraude e irregularidades. Por esta vez, porém, há um homem, Venâncio Mondlane, que não está disponível para participar na encenação que a Frelimo monta há várias décadas, liderando a revolta de um Povo que está a descobrir que quando as instituições falham, resta ao Povo ser Soberano.
São vários os relatos de fraude e de violência.
Falei com vários observadores, e em surdina nenhum tem reservas em classificar as eleições como fraudulentas. Qualquer pessoa que ausculte a sociedade moçambicana percebe, também, que a Frelimo perdeu todo o apoio social, em todas as classes sociais. Não há, hoje, ninguém disponível na sociedade civil para dar a cara pelo Regime, que não os militares a soldo, muitos deles mercenários ruandeses ou sul-africanos, ou avençados que vivem sob vergonha e medo.
Há mulheres que foram espancadas e assassinadas. Velhos agredidos. Crianças mortas a sangue-frio. Ana Azarias Ngovene, grávida de sete meses, tem seis balas no corpo que não vai poder remover até dar à luz. Para se salvar, a si e ao seu filho, terá de conviver em sofrimento com as balas cravadas, como forma de expiação. Fábio Cipriano Alberto estava dentro de sua casa, no Bairro Luís Cabral, batendo panelas em protesto, quando militares entraram em sua casa para o balear. Está com o corpo cheio de balas não tendo recursos para se operar. Outras histórias idênticas poderia aqui contar. Soldados ruandeses fazem raides na periferia de Maputo onde há relatos de mortos entre populações civis desarmadas. São várias as pessoas – que somam já centenas – assassinadas, e milhares aqueles que têm mazelas no corpo. São ainda mais os civis que vão passar o Natal na cadeia, presos apenas por não aceitarem ver o seu voto roubado nas urnas. Estranha vitória, esta, que não mobiliza ninguém entre a sociedade civil para festejar e precisa de mercenários de países autoritários para impor a Lei e a Ordem.
Moçambique e os políticos moçambicanos estão hoje comprometidos com o narcotráfico e com alguns dos negócios mais corruptos do mundo em termos de extração de matérias-primas. Enquanto país com responsabilidades históricas, devemos pensar o que fizemos, ou deixamos de fazer, mas também o que temos feito, ou deixado de fazer, para que Moçambique tenha chegado ao ponto de decadência institucional e pobreza em que se encontra.
Hoje, lembramos a morte de Vasco da Gama, mas também, o nascimento de Jesus. Os que ainda temos sã consciência e o sentido da vergonha, quando nos sentarmos na mesa de Natal, quando ouvirmos os cânticos da Missa do Galo, rezemos por todos os que sofrem, por todos aqueles a quem o mais básico lhes está a ser roubado, e rezemos, também, para que a justiça de Deus castigue um dia a maldade humana. A História, essa, continuará a ser feita, com o sangue daqueles que não se vergam, e que sujarão as mãos dos que, por ação ou cumplicidade, por corrupção ou cobardia, por razões de mera conveniência ou inerências de função, escolheram estar ao lado das personagens mais sinistras que o nosso tempo tem sido capaz, ainda, de colocar em lugares de Poder.