As pessoas inquietam-se sobre a vida que vem aí. As inquietações sobre a vida futura dizem porém respeito a estados de coisas que ainda não se verificaram, e são inquietações ociosas. As inquietações retrospectivas são menos prematuras. Dão apenas relevo àquilo que já se passou; mesmo quando, como é muitas vezes o caso, se lamenta aquilo que se passou há muito tempo, ou quando não se passou muita coisa. Um filósofo antigo defendeu que sem inquietações retrospectivas muito constantes a vida não vale a pena ser vivida.
É inegável que ver o que já se passou numa vida dá que pensar. Frequentemente esses pensamentos consistem em imaginar que tudo se poderia ter passado de outro modo; e em rearranjar na cabeça o que se passou. A sugestão de arranjo é acolhedora: mesmo que se lamentem ocorrências, dá-nos a oportunidade de comparecer acompanhados pelas nossas razões e pelos nossos motivos. Como o medo do futuro, o rearranjo do passado é porém sempre mental. Nunca conseguimos voltar atrás no tempo e escolher, esperando outros resultados, possibilidades de acção que agora lamentássemos menos.
Parece trivial mas é também importante que esses exames retrospectivos tenham como ingrediente principal os incidentes e as aventuras das nossas vidas. Quem examina a vida examina geralmente a sua vida. Examinar a vida dos outros, com a continuação, acaba por cansar um pouco. O facto de uma certa vida ser nossa parece requerer que se lhe dê maior atenção. Naturalmente alguma atenção à nossa vida não pode deixar de ser prestada; mas desconfiamos às vezes de que estamos completamente rodeados por pessoas que prestam demasiada atenção às vidas deles.
Prestar demasiada atenção às nossas vidas é como encomendar a um correspondente internacional cuja carreira já conheceu melhores dias uma reportagem sobre um assunto de interesse local; essas reportagens, talvez pelo acesso privilegiado que os seus autores têm aos assuntos de interesse, sugerem que grandes coisas dependem sempre da inauguração dos fontanários; e dão por isso a ideia de que todas as vidas e acontecimentos podem causar um tremor de terra em São Francisco, e têm um interesse igual. Quem se atarefa a ver a sua vida reserva-se quase sempre um papel na ordem internacional.
É o medo de as nossas vidas serem da família dos fontanários inaugurados que nos incita a invocar a feição geral das coisas. Só os pobres de espírito não têm esse medo, talvez porque sejam mais parados: acham que a nossa dignidade não-trivial consegue sobreviver à escassez de aventuras; que existe uma certa alegria na ideia de uma vida que já se passou, como quem escapou a uma carga de água; ou na ideia de uma vida que se passou sem termos reparado nela; ou na circunstância de, ao reparar na nossa vida que se passou, nos espantar agradavelmente que não tenha havido nela nada de especial para ver.