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um cravo em Abril – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mar 16, 2024

A pouco mais de um mês do cinquentenário do 25 de Abril, a democracia portuguesa mostrou a sua maturidade com a maior descida da abstenção de há décadas e a afluência às urnas de um eleitorado jovem, que, com elevado sentido cívico e vontade de participação democrática, saiu à rua para votar.

No entanto, os comentadores e as forças vivas (e mortas) do regime, que começaram a noite eleitoral a saudar esta mudança (“O povo português é sábio e responde prontamente quando sente que a democracia está em perigo”), acabaram por ter de dar ao (afinal não tão sábio) povo uma lição de democracia:

“É importante que haja mais gente a votar, mas … dependendo do objectivo desse voto”; ou “Eu percebo que o nosso instinto quando vemos a abstenção baixar seja de nos congratularmos do ponto de vista cívico e democrático, mas tudo depende dos partidos que representarem essa queda da abstenção.  É arriscado dizermos que a abstenção cair é bom sem sabermos quem foi o maior contribuinte para ela baixar.” (Sic)

Era, de facto, arriscado dizer que era bom, quando já havia indícios de que o maior contribuinte para a queda da abstenção e para o voto jovem pudesse ser um partido “anti-democrático”. O PCP?  O Bloco de Esquerda?  O Livre? O PAN? Não: os animais propriamente ditos, os Untermensch, os grunhos, os “deploráveis” do Chega, aqueles com quem a Esquerda já tinha dito que ninguém na Esquerda e muito menos na Direita podia falar; os que, liderados pelo único demagogo da política portuguesa, tinham conseguido ludibriar o povo com falsas promessas.

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Com os barões da democracia parlamentar em pé de guerra perante o engrossar do grupo de sem-maneiras, de pé-descalços, de pobretanas, de iletrados, de novos-ricos da política, enfim perante um grupo fresquinho de “fascistas” (PSD e CDS podiam, por escassos momentos, folgar as costas enquanto o pau ia e vinha em costa alheia), quase nos esquecemos que estas eleições antecipadas foram geradas por uma crise política.  Uma crise que pode ter sido uma gota de água, mas que foi a gota de água que fez transbordar uma degradação acelerada das instituições, com casos altamente duvidosos sobre a honorabilidade e competência das pessoas no poder. E sobretudo, que ocorreu num quadro de falência geral dos serviços públicos, nas áreas onde os cidadãos esperam ter resposta – na Saúde, na Educação, na Segurança.

Também quase nos esquecemos, entre linhas vermelhas, que a 10 de Março, no ano do centenário do 25 de Abril, a Direita conseguiu a sua maioria mais expressiva de sempre.

E talvez não tenhamos ainda reparado que, passadistas, agora, só os toques a reunir da Extrema-esquerda – a esquerda à esquerda do PS. Especialmente debilitada desde Domingo e entre um moderno arco-íris de fobias várias atiradas a eito, a esquerda mais extrema parece regressada ao PREC, na ânsia de fazer uma frente anti-qualquer coisa que não se sabe bem o que seja e a que, por defeito, tique e saudosismo, chama “fascismo”.  Também em estilo vintage-realismo soviético surge um cartaz da Juventude Socialista apelando à Resistência! (estando o governo socialista ainda em funções); um cartaz com um punho em primeiro plano e umas rodas dentadas em fundo.  Quanta saudade.

Mas se uma parte mais incomodada ou mais radical dos “democratas” reage assim aos “anti-democratas”, há sectores mais liberais que revelam maior abertura para como os “iliberais”, recorrendo a um passado mais recente, a 1985, e a uma atitude mais paternalista.  Afinal, os eleitores do Chega, à semelhança dos eleitos, são também gente básica, grosseira, primária, com graves deficiências de formação e informação, logo, permeáveis à propaganda e à demagogia de André Ventura, o único demagogo português. E depois, não será caso para alarmes, pois, tal como aconteceu com o PRD – que, em 1985, chegou a ter 45 deputados, mas logo se reduziu à irrelevância, acabando por servir de trampolim para a maioria cavaquista –, também o Chega, depois do presente fogacho eleitoral e do futuro contributo para ingovernabilidade, se havia de evaporar, abrindo caminho a um regresso ao mundo encantado da alternância democrática.

Acontece que o PRD, de Ramalho Eanes, além de não ter apresentado, em termos de ideias, grandes diferenças em relação ao PS ou à esquerda do PSD, não correspondia, como hoje o Chega, a uma vaga de fundo europeia. Só uma gestão desastrada e suicida do espaço conquistado – o que é difícil, mas não impossível – levaria a que a tese do fogo-fátuo se aplicasse ao partido de Ventura.

A política, como a natureza, tem horror ao vazio, e o Chega vem tentar preenchê-lo. A religião, a nação, os valores e os costumes essenciais à continuidade civilizacional não desaparecem assim, num caos inorgânico de micro causas e utopias mais ou menos voluntaristas. As novas direitas só nasceram das urnas e pelas urnas porque os partidos tradicionais foram, por medo ou correcção ideológica, abandonando valores e grupos sociais considerados ultrapassados ou tornados “deploráveis”. Os mesmos valores que, embora esquecidos pelos partidos e movimentos políticos, permaneceram em núcleos minoritários de elites intelectuais alternativas. E entre “o povo”.

Ora, aparentemente, no sistema partidário português os partidos à direita do PS – apesar da AD de Sá Carneiro, do PSD cavaquista dos anos 80, de Passos Coelho e do CDS-PP de Manuel Monteiro –, deixaram de se identificar com as antigas agendas da direita social e não parecem identificar-se com as actuais agendas das direitas europeias. Quer da direita nacional conservadora, conservadora nas questões éticas e fracturantes e voltada para a defesa da identidade e da independência nacional perante o federalismo europeu; quer da direita mais popular e populista, igualmente centrada na independência nacional e, sobretudo, na imigração descontrolada, mas mais liberal ou laica em matéria de costumes, embora crítica do wokismo.

Das direitas conservadoras, fazem parte o Fidesz, de Órban e os polacos do Lei e Justiça; das populares, o Rassemblement National, de Le Pen, e a AFD alemã. Os Fratelli d’Italia estão no meio caminho. São diferenças naturais porque, ao contrário das esquerdas, fundamentalmente internacionalistas, as direitas, por serem nacionalistas e identitárias, variam de país para país.

O problema da classe política na Europa e nas Américas no pós-Guerra Fria foi geral: não atendeu às graves consequências para as classes trabalhadoras – e agora para as classes médias – de uma política económica globalista que levou à desindustrialização de vastas regiões da América e de muitos países europeus; e sacrificou os valores comunitários a um neoliberalismo economicista sem preocupações sociais. Enquanto isso, a Esquerda, finda a URSS e os partidos “operários”, abandonava as causas sociais, concentrando-se na defesa das minorias reais, imaginadas e imaginárias da “nova esquerda”.

E depois da euforia pós-Guerra Fria, dos entusiasmos fukuiâmicos da ordem internacional liberal, a realidade da natureza dos Estados e dos homens, até por necessidade de sobrevivência, voltou a impor e a repor esses valores no quadro das opções democráticas.

Valores tão fortes que alguns dos que os representam conseguem triunfar apesar das suas personalidades algo histriónicas e pós-modernas –ou, às vezes, por causa delas.

Aqui, em Portugal, o fenómeno chegou mais tarde. Associando os valores da Direita ao Estado Novo vencido há cinquenta anos, a Esquerda conseguiu manter uma forte hegemonia cultural, explorando os complexos de inferioridade e a ânsia de “correcção” das classes políticas dos partidos à direita do PS.

O sucesso de André Ventura – que, apesar da feroz oposição quase unânime dos media e da opinião publicada, conseguiu romper a cerca – foi ter aparecido como alternativa para um eleitorado desiludido e afastado da política (os abstencionistas), para parte significativa dos novos eleitores e para os desiludidos com a crise, a precariedade e a decadência  da sociedade e do país.



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