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Passos em volta – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Abr 17, 2024

“Passos aparece de novo”, titulava ontem uma notícia do Observador. “Não há duas sem três”, começava por detalhar Miguel Santos Carrapatoso na abertura do texto, “Depois de ter apresentado o livro Identidade e Família e depois da entrevista a Maria João Avillez, no Observador, Pedro Passos Coelho fez uma nova aparição, desta vez no clube Rotário Parque das Nações”. Assim mesmo: “aparição”. Não se aponte o dedo ao autor pelo misticismo da terminologia – uma rápida vista de olhos pela imprensa mostra como esteve longe de ser caso único. A pedir responsabilidades que o façamos ao sujeito da história: o antigo primeiro-ministro que se tornou, por estilo ou substância, neste fenómeno. Uma presença que, de vez em quando, se encontra entre nós. Qualquer coisa entre a divindade e o OVNI. Um oráculo. Um espectro. Depois de anos de silêncio, entrou-se, ao que parece, numa época boa para os avistamentos de Passos. Para os encontros imediatos. Mas quais serão as suas intenções? Virá em paz ou planeia invadir? Não se sabe e o próprio não esclarece. Qualquer dia, arrisca-se a vir na secção de ciência.

É um estranho culto pelo oculto que tem a direita portuguesa. Não sei se já reparou. Os líderes da esquerda propõem-se sempre a tudo: todos querem ser Presidentes da República, Altos-Comissários, Secretários-Gerais da ONU, Presidentes do Parlamento Europeu ou mesmo do Conselho; os da direita nunca querem nada. Apostam no charme do desentendido: “eu ia só a passar”, “vim só fazer a rodagem do carro”, “nem que Jesus Cristo desça à Terra”. De Cavaco a Marcelo, de Passos a Marques Mendes, adoram um tabu. São a moça que se faz difícil, o gaiato que finge não estar assim tão interessado. Se a política fosse uma loja de roupa, diriam que “estão só a ver”.

Aparentemente, Pedro Passos Coelho decidiu ser esse novo pretendente desprendido. Um discurso numa campanha eleitoral aqui, uma conferência ali, uma entrevista acolá, uma apresentação de livro acoli. Sempre a deixar cair qualquer coisa para lá dos estritos limites do pretexto: uma observação sobre o que o partido devia fazer, um comentário sobre um tema na agenda, uma crítica a um político no activo, umas frases mais ou menos cifradas para a bolha mediática se entreter a descodificar. Não tem direito? Claro que tem direito – mas também tem deveres. Especiais. As suas palavras não têm o impacto das de um cidadão comum porque Passos Coelho não é um cidadão comum; é um ex-primeiro-ministro, um antigo presidente do PSD, um militante activo e destacado de um partido que acaba de regressar ao governo numa situação extremamente precária e depois de quase nove anos de travessia do deserto. Ou Passos Coelho percebe que está a causar dano a esse partido e a esse governo e é grave, ou não percebe e é capaz de ser mais grave ainda.

Passos foi um primeiro-ministro corajoso e o homem que livrou Portugal de três coisinhas muito simples: de José Sócrates, de Ricardo Salgado e da troika. O país nunca lhe agradeceu e, provavelmente, nunca agradecerá o suficiente. Mas faltou-lhe sempre o talento para as palavras ou, o que não é melhor, a compreensão da sua importância. Do “não sejam piegas” ao aconselhamento à emigração, passando pelos míticos “ir além da troika” ou “que se lixem as eleições”, entre 2011 e 2015, de cada vez que o primeiro-ministro abria a boca os seus maiores admiradores tremiam com medo de que provocasse um motim. Mas, em todos aqueles casos, era perfeitamente possível deslindar a intenção benigna de cada declaração porventura menos conseguida. O PM não se estava a lixar para a democracia; estava a dizer que tomava as decisões de que o país precisava, independentemente do preço que pudesse pagar nas urnas. Não estava a mandar os portugueses daqui para a fora; estava a ser sincero e realista, características raras na política portuguesa e global. Et cetera. Passos foi sempre mais ou menos brutal no que dizia, mas sempre pareceu movido por um hercúleo sentido de responsabilidade: “Eu não abandono o meu país”, disse, num dos seus momentos políticos e comunicacionais mais conseguidos, quando recusou ceder à “demissão irrevogável” do mesmo Paulo Portas com quem parece lembrar-se de vir agora, despropositada e desnecessariamente, acertar contas.

Mais: de que forma está agora, Abril de 2024, a pôr os interesses do país acima dos pessoais? Quer voltar a ser primeiro-ministro? Quer ser Presidente? Quer, simplesmente, dizer o que pensa e talvez nunca tivesse tido a liberdade para o fazer? Não sabemos. Mas ao menos descobrimos uma coisa: não foi a saída de Passos da liderança do PSD que criou um espaço para o nascimento de um partido liberal em Portugal. Acabaram-se os órfãos do passismo. “Aparição” após “aparição”, para condenar a eutanásia, recomendar coligações com o Chega ou apresentar livros de movimentos que defendem a criação do “estatuto da mulher dona de casa”, Passos não é, talvez nunca tenha sido, nem o papão liberal que a esquerda temeu nem o Dom Sebastião com que os liberais, um dia, sonharam.

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