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Juntar as mãos e reparar no caminho – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 2, 2024

O país irmão de língua portuguesa mais próximo geograficamente é Cabo-Verde. Os cabo-verdianos têm a expressão, ‘djunta mon’, no sentido de dar as mãos para um trabalho conjunto, normalmente aplicado para, em situação de pobreza, podermo-nos ajudar em busca da prosperidade. O país irmão mais longínquo é Timor-Leste e ‘haré dalan’ é boa viagem, significando, literalmente, olhar/reparar no caminho. Os timorenses têm uma estória transversal sobre o ‘caminho’: é uma estória de 2, 3 ou mesmo 7 irmãos em que ao mais novo foi dado uma pena e papel e dito que viajasse para ocidente e norte em busca de conhecimento. Estas duas expressões e os seus significados sociais profundos podem ser usados para o que temos de fazer em relação à fraternidade crioula transoceânica: uma acção de juntar mãos em função de uma viagem conjunta. E, claro que a razão da viagem há-de ser a de estarmos juntos num espaço crioulo (novo) de cidadania… ou seja, a própria viagem.

Qualquer caminho em direcção ao ‘Outro’ é uma busca de conhecimento que, como toda a busca de conhecimento (veja-se as metáforas do Jardim do Paraíso ou da Torre de Babel), resulta em perdas várias, mas também em ganhos. Cabo-Verde foi um território onde os Portugueses ensaiaram uma ‘sociedade nova’, feita de muitas diversidades e Timor-Leste, significando literalmente ‘o Oriente do Oriente’, foi o último quase-antípoda em que os portugueses se instalaram, ainda que tenham chegado mais longe. Que nesse quase-antípoda encontrássemos uma estória de busca do conhecimento como que em espelho, numa viagem para Ocidente e Norte, deve ser objeto de reflexão. Em 25 anos de interesse científico contínuo sobre Timor-Leste, um dos fascínios que tive, e tenho, é o dessa viagem (com nomes como estória dos irmãos, estória do caminho, caminho da bandeira ou ainda outros, consoante a variante). Num dos momentos altos, perguntava a um velho muito velho (que já tinha nos anos 70 sido colaborador de uma antropóloga na estória do caminho) qual a razão de tal estória, dizendo-lhe ao mesmo tempo que certamente a pergunta certa a fazer eu não a sabia. E o velho disse-me algo como: “Se não sabe a pergunta então tem de regressar a Portugal, a estudar mais e voltar a Timor para perguntar”. Na altura entendi isto como uma derrota mas mais tarde percebi que tal como muito do que é dito em Timor-Leste, deve ser entendido de muitas maneiras. O velho estava a mandar-me fazer o caminho sobre o qual eu estava a perguntar a razão… De facto, o caminho só se percebe quando se faz várias vezes! A raíz da palavra caminho (Dalan) em tétum é Dala, que significa ‘vez’.

A viagem como um reparar no caminho e o juntar de mãos fez o que cada um de nós enquanto povos somos hoje. Aqueles que dos países africanos vieram estudar para Portugal e as conversas que tiveram a partir da Casa do Império ativou o ‘nacionalismo à distância’ e os movimentos de independência. Aqueles que de Portugal foram combater para o “Ultramar” ativaram também um ‘nacionalismo à distância’ que desembocou no movimento dos capitães e no 25 de Abril.

Por outro lado, assim como aqueles que emigraram para países europeus e (em alguns casos) aí deixaram os seus filhos e netos, passaram a ter uma visão de Portugal numa relação estreita com a Europa, de ir e vir, também as viagens de ida e volta da diáspora colonial e contra-diáspora dos retornados e refugiados, que em 1975-76 trouxe 500.000 pessoas para Portugal, possibilitaram visões desse mundo que vai de Portugal a Timor-Leste. Essas visões continuam hoje, assim como o ir e voltar.

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CPLP, PALOP, ‘países irmãos’, lusofonia, lusotopia ou mesmo lusutopia são tentativas de encontrar uma viagem com sentido e uma razão para estarmos juntos. Todas essas expressões são evidência de que precisamos de um convite à utopia. De uma nova estória de busca de conhecimento e prosperidade. ‘Djunta mon & haré dalan poderia ser um bom lema para um espaço de hospitalidade de todos, uma ecumene: um espaço que reconheçamos como de cruzamento transfronteiriço, de fluxos e de encontros culturais para todos. A reparação humanitária pela culpa do homem branco é tão só mais uma prisão, o coçar uma ferida que facilmente fica em sangue. A verdadeira reparação humanitária é reparar no caminho em conjunto quantas vezes for necessário rumo a uma cidadania regional e global.

Há mais de 25 anos atrás, quando se preparava a comemoração dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama à Índia, a Comissão dos Descobrimentos propunha para tal comemoração a construção de um Mercado no Oriente da cidade de Lisboa. Quando Mega Ferreira foi nomeado comissário da Expo-98 e olhando bem o caminho reconsiderou a viagem: não era o passado dos descobrimentos que devíamos comemorar, tão pouco era Vasco da Gama ou a chegada de um Português à Índia. De facto, o que devíamos comemorar era o futuro; o que devíamos comemorar era o espaço livre que nos deve unir, o dos Oceanos; e, finalmente, o que devíamos comemorar era um património que podemos construir numa comunidade internacional. O lema da Expo, ‘Oceanos: um Património de Futuro’ tornou-se, assim, a viagem coletiva que substituiu uma rememoração solipsista em torno de um passado nacionalista imperial e de todos os seus tropeços.

Essa mensagem genial que Mega Ferreira nos deixou deve também ser aplicada agora. Precisamos de uma comunidade que seja capaz de djunta mon e haré dalan! Juntar mãos e reparar no caminho quantas vezes for necessário!



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