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Só nos quiseram contar histórias da Carochinha – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 4, 2024

Para quem não suporta falsificações da História, estes dias têm exigido doses homéricas de paciência. Mas nem um monge cartuxo aturaria em silêncio tudo o que foi escrito e dito esta semana sobre o primeiro 1.º de Maio da democracia. Aqueles que ouviram, obedientemente, as missas que tomaram conta do país foram catequizados com uma versão dos acontecimentos segundo a qual, em 1974, o país se uniu numa festa a favor da liberdade e da democracia. Segundo parece, apenas seis dias depois do 25 de Abril, correram rios de mel, os pássaros juntaram-se para cantar hosanas e o sol, metaforicamente ou não, bailou. O maior símbolo desse milagre terreno teria sido o “abraço” entre Álvaro Cunhal e Mário Soares no comício realizado no chamado estádio do INATEL. Essa seria a prova evidente de que houve um momento dourado na nossa História em que todos os conflitos foram esquecidos para que, como dizia alguém, a harmonia substituísse o conflito, a verdade substituísse o erro e a fé substituísse a dúvida.

É uma história bonita e comovente. E também falsa. No 1.º de Maio de 1974, os líderes partidários não andavam de mãos dadas, irmanados com o povo numa celebração única de uma bela revolução. Não precisam de acreditar nas minhas palavras — basta acreditarem nas palavras de Mário Soares. Felizmente, o fundador do PS quis deixar tudo escrito e explicado sobre aqueles dias, para que não houvesse confusões ou ambiguidades.

Anos mais tarde, Soares lembraria a Maria João Avillez que o comício daquele primeiro 1.º de Maio, onde esteve com Álvaro Cunhal, o “desagradou profundamente”. O problema inicial foi com a coreografia. Ao chegar ao palco, o líder do PS foi informado da ordem dos discursos e percebeu que “seria o penúltimo a falar e Cunhal encerraria o comício”. Desconfiado, perguntou aos elementos da CGTP encarregues da organização qual o motivo para aquela decisão que favorecia o líder comunista. A resposta foi sonsa e descarada ao mesmo tempo: a deferência para com o secretário-geral do PCP justificava-se pelo facto de Cunhal “ser o mais velho”. O segundo problema de Soares foi com uma artimanha. Ao discursar, “sem ler e com emoção”, o socialista “empolgou” os manifestantes. Perante aquela reação, os sindicalistas do PCP puseram a tocar o hino nacional, “para cortar os aplausos”. O terceiro problema foi com o discurso de Cunhal. O líder comunista falou colocando-se “entre um marinheiro e um soldado”, “com ressonâncias subliminares de Petrogrado em 1917”. Eram vários sinais ao mesmo tempo. Depois de tudo aquilo, Mário Soares percebeu que precisaria de ficar alerta: “As coisas começaram a parecer-me menos claras do que julgara”.

Na realidade, “as coisas” eram já claríssimas. Nestes 50 anos do 25 de Abril, só o comunista Domingos Abrantes falou com sinceridade sobre aquele dia. Esta semana, ao Diário de Notícias, explicou que o 1.º de Maio de 1974 foi “o momento em que as massas populares entraram em ação como atores da revolução” e que “foi a partir da ação gigantesca das massas populares que se iniciou o processo revolucionário, que depois vai impor enormes transformações”.

Além de Mário Soares, houve outras pessoas a perceberem tudo. Em Coimbra, o social-democrata Barbosa de Melo participou no cortejo do Dia do Trabalhador na Baixa de Coimbra e ficou preocupado ao ver apenas bandeiras do PCP. Não conseguiu dormir e de manhã cedo disse à mulher que deviam fugir enquanto era tempo: “Recuso-me a viver num regime comunista. Sei o que acontece depois de eles tomarem o poder: já não sai ninguém”.

Depois de pensar melhor, Barbosa de Melo não fugiu — ficou no PSD. E, depois do que viu no estádio do INATEL, Mário Soares não se amedrontou — enfrentou Cunhal. Para ambos, tornara-se evidente que, no 1.º de Maio de 1974, o PCP já estava a preparar a tomada do poder. E, para usar uma frase que surgiria bem mais tarde, decidiram que não precisavam de uma boleia, precisavam de munições políticas para impedir o golpe dentro do golpe. Mas, nestes 50 anos do 25 de Abril, nada disso interessou: foi impossível resistir à tentação de usar fantasias para, primeiro, mitificar o passado e, depois, utilizar esse passado, devidamente recauchutado, nas lutas políticas do nosso dia a dia. Digam o que disserem, isso não é História — são histórias da Carochinha.

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