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Espanha em transe – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 8, 2024

No dia 25 de Abril, quando Portugal festejava o seu dia maior, Pedro Sanchéz, o primeiro-ministro Espanhol, decidiu escrever uma carta aos cidadãos. Nessa carta, Sanchéz deixava o país em suspenso, anunciando que passaria os próximos dias a reflectir, nas palavras dele, “se valia a pena”. Queixando-se de um ataque sistemático por parte dos meios de comunicação social e da justiça, numa campanha negra orquestrada, como não poderia deixar de ser, pela direita e pela extrema-direita, Sanchéz atirou para a segunda-feira seguinte a comunicação ao país das conclusões da sua reflexão. Na segunda-feira seguinte, às 9 da manhã, Sanchéz teve um encontro oficial e formal com o Rei, levando toda a gente a intuir que uma decisão mais conclusiva estava próxima. Quando se dirigiu ao país, porém, Sanchéz comunicou que tinha reflectido e que havia chegado à conclusão que continuaria a ser primeiro-ministro. Esta ópera bufa só pode ser caracterizada de uma maneira: patética.

Em primeiro lugar, descritos os factos, vamos à forma. Pedro Sanchéz decidiu comunicar directamente com os cidadãos, ignorando completamente as instituições, incluindo o seu próprio partido. As cúpulas do PSOE foram apanhadas de surpresa com a carta de Sanchéz. Como vem nos livros, os partidos políticos e as instituições servem para organizar o processo de tomada de decisões, racionalizá-lo e dar-lhe densidade jurídica. A ideia de comunicação não-mediada entre políticos e cidadãos faz parte do cânone dos populistas. Notem que acho Sanchéz um homem extremamente inteligente e um político muito hábil. No entanto, numa democracia Europeia civilizada e avançada, escrever uma carta directamente aos cidadãos elencando uma litania de queixas contra a suposta campanha dos ‘ultras’ só é algo normal no livro de truques de Pedro Sanchéz.

Ainda na forma, durante o fim-de-semana de suposta reflexão do primeiro-ministro Espanhol, assistimos a momentos que me deixaram verdadeiramente perplexo. Tinha voltado a Madrid no dia anterior. No entanto, ouvindo falar Espanhol na rua, estava com dúvidas de ter aterrado num país da América Latina onde um qualquer caudillo havia tomado conta da cena política. Junto à sede do PSOE, a televisão transmitiu cenas de verdadeiro transe e histeria colectiva na rua, com um cortejo de ilustres e populares, a gritarem “Pedro fica” ou “Pedro precisamos de ti” (sic). Tudo isto, claro, enquanto altifalantes gigantes debitavam a altos berros a música de Raffaella Carrà chamada “Pedro”, um hit de gosto duvidoso do início dos anos 80. Qualquer semelhança entre tudo isto e uma manifestação Peronista na Argentina não é pura coincidência. Por último, deixem-me ainda sublinhar a utilização instrumental da figura institucional do Rei em tudo isto. Para dar credibilidade ao seu golpe de teatro, Sanchéz visitou Filipe II na Zarzuela, para lhe comunicar que continuaria como primeiro-ministro. Não havendo nada para comunicar ao Rei, até porque nada lhe era pedido, nem legal nem politicamente, a única explicação é que Sanchéz decidiu que instrumentalizar a figura do Chefe de Estado daria gravitas à crise política.

Em segundo lugar, passemos ao conteúdo. Ao contrário da forma, que poderia ser até motivo de piada na mistura kitsch-drama típica de um famoso cineasta Espanhol, cuja voz, de resto, se juntou ao apelo daqueles que pediam a “Pedro” que ficasse, o conteúdo é de uma gravidade extrema. O que pretende Pedro Sanchéz? As suas queixas são, fundamentalmente, de duas ordens. Por um lado, queixa-se que existe uma campanha mediática contra si, contra a sua família e contra o seu partido. Segundo o chefe de governo, existe um sem número de órgãos de comunicação social, maioritariamente sediados em Madrid em formato online, que se dedicam a uma campanha negra, levantando lama contra ele, a sua família e o seu governo. Estes órgãos estão, naturalmente, a trabalhar em nome da extrema-direita que, ainda segundo Sanchéz, quer envenenar a convivência democrática. Sugiro aos leitores que substituam a palavra Sanchéz por Órban e a expressão extrema-direita por esquerda. Qual é a impressão que isto deixa? A queixa de um primeiro-ministro que não está confortável com o escrutínio do quarto poder.

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Obviamente que Sanchéz não é Orban. No entanto, para efeitos analíticos, a analogia pretende demonstrar que existe um primeiro-ministro numa democracia Europeia madura e robusta que ameaçou demitir-se por conta de uma suposta campanha da comunicação social contra si. Deixem-me ser claro que admito que existam órgãos que podem, às vezes, passar a linha do bom gosto e do decoro. No entanto, entre jornalistas à solta ou políticos à solta sei sempre que prefiro o primeiro caso. A ideia de Sanchéz sobre o que fazer com a comunicação social foi consubstanciada por alguns intelectuais orgânicos ligados ao PSOE nos jornais nos últimos dias. No fundo, a ideia seria criar um órgão de fiscalização que ponha fim, e cito, às “formas mais difíceis de impunidade jornalística”. Não sei exactamente o que significa pôr fim à impunidade jornalística. No entanto, julgo que, quando soubermos, a erosão democrática estará num ponto muito avançado.

Para além da comunicação social, Sanchéz queixa-se ainda da Justiça. Nos últimos anos, depois do Podemos, o PSOE começou a utilizar amplamente o conceito de lawfare como instrumento para combater toda e qualquer investigação judicial que vise o partido. Lawfare, um conceito amplamente utilizado na América Latina (et pour cause…) significa a utilização do sistema judicial para deslegitimar o oponente político, conseguindo com isso ganhos políticos. Por exemplo, o chamado Caso Koldo, no contexto do qual está a investigar um caso de corrupção no qual altas figuras do PSOE alegadamente lesaram o Estado em milhões de euros nos negócios de compra de máscaras durante a pandemia, está a ser apontado pelo PSOE como um caso de lawfare. Segundo Sanchéz e o PSOE, o sistema de justiça não só está ao serviço, mas também infiltrado pela direita e extrema-direita, que o utilizam como arma política contra a chamada coligação “progressista”. Sejamos claros. É perfeitamente possível que existam vários juízes e procuradores que utilizem o seu poder para avançar a agenda política do seu campo da barricada. No entanto, um sistema judicial pressupõe a existência de múltiplos actores, com uma hierarquia clara e a possibilidade de recurso. Se um actor falhar ou tiver motivações políticas – e isso acontece no mundo real – o sistema está montado para ter redundâncias que permitam salvaguardar os direitos dos cidadãos. A ideia de que todos os actores do sistema judicial são de direita e estão numa campanha contra Sanchéz é simplesmente risível. Dentro do mesmo sistema existem, naturalmente, elementos de direita, de esquerda e até muitos sem motivações políticas. A sua mistura garante o funcionamento do sistema. No entanto, face a tudo isto, Sanchéz pretende realizar uma reforma da justiça que, ainda não se conhecendo os detalhes, não augura nada de bom, pelo menos no tom e no objectivo geral do chefe de governo.

O sistema político Espanhol está numa encruzilhada e caminha a largos passos para uma crise de regime. A coligação progressista de Sanchéz está bloqueada, como seria, de resto, de esperar. Foi montada, única e simplesmente, para manter Sanchéz na Moncloa. Não há qualquer ligação ideológica na mistura de partidos de extrema-esquerda até partidos de extrema-direita regionalistas. De resto, o facto de Sanchéz nem sequer ter ainda tentado apresentar um orçamento de estado numa legislatura que leva já mais de vinte meses revela bem como o primeiro-ministro está consciente do bloqueio do seu governo. Os primeiros sinais de que esta farsa se começará a desmoronar começam a aparecer, com as primeiras votações de PNV e Junts contra o governo em matérias importantes. Depois das eleições Catalãs do próximo fim-de-semana e de uma eventual da amnistia, o jogo de sombras começará a ser desfeito. Veremos quais os estragos que deixa ao estado de direito em Espanha.



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