No dia 24 de dezembro de 1524, na véspera do Natal, Vasco da Gama lançou o seu último suspiro, três meses depois de regressar a Cochim, no sul da Índia, e 26 anos após ter concluído com sucesso a primeira viagem marítima para aquelas terras orientais. Passados 500 anos, o Ministério da Cultura decidiu honrá-lo com um programa a ter início no próximo mês.
Ladeada pelo historiador José Manuel Garcia e pelo diretor da Biblioteca Nacional, Diogo Ramada Curto, a ministra Dalila Rodrigues revelou na manhã desta terça-feira o programa evocativo do Governo para os 500 anos da morte de Vasco da Gama, numa apresentação feita junto à arca tumular do navegador, no Mosteiro dos Jerónimos.
“Este programa foi realizado por iniciativa do Ministério da Cultura e tem o objetivo de garantir que figuras históricas com esta importância e ciclos evocativos ou celebrativos, como são os 500 anos [de Vasco da Gama], façam parte da oferta cultural que o Ministério tem de garantir”, afirmou a ministra.
Segundo Dalila Rodrigues, este programa carrega não apenas “uma dimensão celebrativa” da vida de Vasco da Gama e do seu legado para a História do país, como também “um aprofundamento do conhecimento” desta figura e do seu contexto, dizendo-se na “obrigação de celebrar a História e de valorizar a prática historiográfica”. Neste aspeto, a ministra revelou ao Observador que vai deslocar-se em viagem no início de 2025 a Cochim para tentar “perceber de que modo é que podemos valorizar os lugares de memória e estabelecer relações científicas que valorizem ambos os países”.
Sem explicitar valores, a ministra anunciou que este programa tem uma verba que não excede os 100 mil euros, destinando-se a pagar o concerto, o ciclo de conferências e o conjunto de publicações previsto. Sendo um “ciclo celebrativo que não estava previsto em termos orçamentais”, Dalila Rodrigues informa que este financiamento advém de “uma verba disponível no fundo de fomento cultural”.
Tendo em conta o espetro limitado de iniciativas por conta desta evocação, Dalila Rodrigues fez questão de frisar que o Ministério da Cultura não detém o “exclusivo” das comemorações, pretendendo antes “estimular outras instituições a elaborarem e concretizarem os seus próprios programas celebrativos”.
Segundo o programa das comemorações, o ciclo comemorativo tem início a 16 de dezembro, pelas 17h30, com a colocação de uma coroa de flores, pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, no túmulo de Vasco da Gama, no Mosteiro dos Jerónimos. No mesmo dia, pelas 18h00, realiza-se o concerto Mares, sob a direção do maestro Nuno Corte-Real, pela Orquestra de Câmara Darcos e o Officium Ensemble, no grande auditório do Centro Cultural de Belém.
De acordo com a ministra, o desejo era que este concerto — que inclui a peça Magnificat Manuelino, da autoria de Corte-Real, que a estreou em 2021, por ocasião dos 500 anos da morte do rei D. Manuel I — fosse realizado nos Jerónimos, mas as obras de renovação em curso obrigaram a recorrer à sala de espetáculos vizinha por “questões de segurança e de ocupação do espaço”. Neste dia, serão ainda lidas “as três estrofes do Canto Quarto dos Lusíadas, quando Camões dá a voz a Vasco da Gama”, revelou Dalila Rodrigues.
O restante programa estende-se então para 2025, com um ciclo de três conferências organizadas em locais com relação à vida de Vasco da Gama, todas elas a cargo de José Manuel Garcia, não tendo, para já, sido adiantados mais intervenientes. A 6 de janeiro, a Sociedade de Geografia de Lisboa sedia Vasco da Gama e o início de uma nova época da História da Humanidade. Já a 15 de fevereiro, o Centro de Artes de Sines, terra natal do navegador, recebe uma sessão entre a sua relação com a cidade, ao passo que 15 de março as comemorações deslocam-se para a Biblioteca Doutor Palma Caetano na Vidigueira, vila de que Vasco da Gama foi feito senhor.
Quanto ao projeto editorial, Diogo Ramada Curto informou que a Biblioteca Nacional vai “organizar uma obra em cinco partes” sobre Vasco da Gama, visando a sua publicação no início de 2025 “com a ajuda de cerca de 30 investigadores”. Os cinco volumes vão versar sobre os itinerários marítimos do navegador, a cultura política do seu tempo, as questões sociais que atravessaram a sua vida, o papel que a religião teve nesse período e como a literatura e a arte se relacionaram com este período da expansão.
“São estas as cinco áreas que iremos abordar, com um sentido muito preciso da distinção entre comemorações e ciclos comemorativos, por um lado, e o ofício de historiador e o trabalho de se fazer história, procurando reconstituir Vasco da Gama à luz das estruturas políticas, sociais e económicas do seu próprio tempo”, disse Ramada Curto.
No decurso da apresentação, Dalila Rodrigues fez questão de notar que no subcoro da igreja do Mosteiro dos Jerónimos há dois túmulos — o de Vasco da Gama e o de Luís de Camões —, sendo que a sua presença lado a lado carrega uma “cenografia que não é inocente” e que se estende ao pensamento colonial do Estado Novo.
“Estas arcas tumulares foram aqui colocadas em 1940 pela Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, num ciclo comemorativo de recorte imperialista, como se sabe, para a Exposição do Mundo Português”, recordou a ministra — que, recorde-se, foi diretora deste mesmo espaço entre 2019 e 2024. Tendo em conta essa carga destes dois símbolos máximos do período áureo da Expansão Marítima Portuguesa, Dalila Rodrigues afirmou que “é fundamental que os lugares de memória sejam também apropriados e reapropriados, desmontados criticamente, por forma a que a prática historiográfica e o contexto da vida e da obra dessas figuras históricas fique também liberta dessas apropriações que ao longo dos séculos foram tendo lugar”.
Tendo em conta estas declarações, o Observador perguntou à ministra da Cultura se as comemorações vão refletir a forma como o período da expansão marítima portuguesa tem vindo a ser reavaliado historicamente nos últimos anos. “É claro que os Descobrimentos Portugueses têm de ser vistos a partir de amplas perspetivas. Não podemos, em circunstância nenhuma, ser limitados na visão e na apropriação dos factos históricos”, respondeu, acrescentando que a produção da história obriga “a um esforço permanente de objetividade e de procura das fontes”.
Ao contrário das comemorações dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, também assinaladas este ano, esta evocação da morte de Vasco da Gama fora até bem recentemente ignorada, estando fora da agenda política e cultural. Questionada se isso de deve a um possível desconforto quanto a recordar o papel do navegador na expansão marítima portuguesa, Dalila Rodrigues disse não saber. “A minha motivação é clara. Eu valorizo a prática historiográfica, como disse aqui. Penso que celebrar o passado e as figuras históricas, sempre neste esforço da objetividade que deve ser valorizado, é fundamental. Enfim, enquanto professora que também fui e sou, e nunca deixarei de ser, preocupa-me muito o desconhecimento da História pelas gerações mais novas. E, portanto, partilho também este objetivo com o Ministro da Educação. Por isso, penso que todos os esforços que sejam feitos nesse sentido serão muito bem-vindos”, concluiu.
No entender de José Manuel Garcia — cuja área de especialização historiográfica é a expansão marítima portuguesa e que integrou também a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses em 1998 —, é importante não confundir este período histórico com o tráfico negreiro ou do colonialismo português que lhe sucederam. “Devemos ter uma função pedagógica que permita apurar o que é que significaram verdadeiramente os Descobrimentos e não com ideias de fantasia. Aqui, gosto muito de utilizar um verso de Camões, que é absolutamente fantástico, em que escreveu ‘não meças o passado com o presente’. Portanto, não pode haver anacronismos. A viagem de Vasco da Gama, tal como os Descobrimentos portugueses, teve o significado de obter o conhecimento global da Terra, sem o qual a Terra não era conhecida”, defende em declarações ao Observador.
O historiador realçou antes que, quanto a Vasco da Gama, “é obrigatório manter viva a memória de uma figura tão importante da história universal, não apenas da história de Portugal, porque graças ao descobrimento do caminho marítimo para a Índia, em 1497-1499, dois anos de viagem duríssima, mudou a história”. “Deixou de haver mundos fechados para passar a haver um único mundo aberto. A humanidade passou a ser conhecida na sua diversidade, o que é fundamental, porque anteriormente não existia esse conhecimento global que os portugueses permitiram com Vasco da Gama”, conclui.