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A Ucrânia, a defesa dos valores europeus e o relançamento do projeto único. O discurso inaugural de António Costa nas entrelinhas – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Nov 29, 2024

Senhor presidente, caro Carlos, senhora presidente da Comissão Europeia, senhora vice-presidente do Parlamento Europeu, senhora secretária-geral, é uma grande honra e prazer estar aqui hoje convosco. Dirijo as minhas primeiras palavras ao meu amigo Charles Michel. Caro meu amigo Carlos, faço questão de te agradecer: os teus esforços incansáveis, o teu profundo empenhamento em prol da Europa, foram indispensáveis para construir a unidade europeia em tempos muitíssimo difíceis

Os cumprimentos são o natural arranque das intervenções políticas mais formais, com a referência a altas individualidades presentes na sala. Foi assim que fez António Costa, referindo a presença, ali no átrio do edifício Justus Lipsius (sede do Conselho da União Europeia onde está instalado o Secretariado-Geral do Conselho) do presidente que o antecedeu, Charles Michel, a da presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, a vice do Parlamento Europeu, Pina Picierno, e a secretária-geral do Conselho, Thérèse Blanchet. Um contraste com Charles Michel, que discursou antes dele. O belga dirigiu-se logo diretamente a António Costa e, durante o discurso, cumprimentou funcionários e secretária-geral, sem deixar qualquer palavra à presidente da Comissão, com quem teve sempre uma relação tensa, que piorou muito depois do Sofagate. Já António Costa mantém grande proximidade com Ursula, a quem deu um dos maiores abraços da cerimónia, tanto antes como depois da intervenção. Para Michel, reservou o arranque do discurso, falou-lhe em francês e deu-lhe créditos por ter guiado o Conselho nos “momentos cruciais” dos últimos anos. Antes, tinha ouvido o seu antecessor dizer que não tem “uma bola de cristal” para ver o que aí vem, mas desejava a Costa “menor turbulência” do que aquela que teve de enfrentar.

Fui presidente da Câmara de Lisboa. E orgulho-me de ter servido a minha cidade. Fui primeiro-ministro de Portugal. E orgulho-me de ter servido o meu país. Assumo agora o cargo de presidente do Conselho Europeu. E orgulho-me de servir a União Europeia. Lisboa é a minha cidade. Portugal é o meu país. E a Europa é a nossa casa comum. Não há qualquer contradição entre estes três níveis”

A recordação dos papéis executivos que teve nos últimos vinte anos em Portugal serviu a Costa para introduzir na sua primeira intervenção a questão da “unidade” pela primeira vez. Para Costa, ser “verdadeiramente patriótico é construir uma Europa comum”. Um dos objetivos que o novo presidente do Conselho Europeu traz para o seu mandato é a ideia do espaço comum e da promoção desse entendimento entre os Estados-membros, uma mensagem que quer que seja a marca do seu mandato: “Só juntos, os europeus podem dar segurança, estabilidade e paz [ao continente]; só juntos conseguirão um caminho de prosperidade, uma economia em crescimento e a transição climática”.

Temos 27 histórias e culturas diferentes, e olhamos para o mundo a partir de diferentes pontos geográficos. Essa diversidade é perfeitamente natural. Enriquece-nos. E nós podemos, de facto, tirar partido dela. É a força da Europa (…) Como presidente do Conselho Europeu, a minha missão quotidiana será consolidar esta unidade e acarinhar a nossa diversidade natural”

A unidade na diversidade que é normal entre 27 Estados-membros com dinâmicas, contextos e líderes políticos muito diferentes, mas que terão de sentar-se à mesma mesa e chegar a entendimentos por vezes até contraditórios sobre os tais “valores comuns” que António Costa garante existirem. Basta lembrar que nessas reuniões (e a primeira vai realizar-se já a 20 deste mês) estarão sentados socialistas, sociais-democratas, conservadores e nacionalistas. A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, a única do grupo que votou contra António Costa (em protesto contra o método de eleição), e foi a primeira que o presidente do Conselho Europeu visitou quando começou a tour de apresentação pelos Estados-membros. Não é para menos e parte da sua nova missão será esta: conduzir encontros de duração muitas vezes imprevisível e muitos contactos paralelos e discretos para desbloquear posições até ao consenso possível.

A Europa é feita de valores, de paz e de prosperidade. Começo pelos nossos valores comuns (…) Estabelecem padrões exigentes para todos nós, tanto para as instituições como para os cidadãos. A dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de direito e os direitos humanos, incluindo a proteção das minorias

Sabendo que tem à mesa líderes conservadores nacionalistas (Viktor Òrban, com quem tem uma relação próxima, é um deles, mas também Meloni ou o polaco Mateusz Morawiecki), Costa colocou a tónica de boa parte da sua intervenção na necessidade de encontrar um equilíbrio entre as partes, tendo sempre na mira os “valores comuns” que nomeou. À cabeça, o respeito pelo Estado de Direito, mas também a urgência de garantir a “proteção das minorias”. A discussão da imigração tem sido central no quadro europeu, onde a direita populista tem crescido muito à conta de um discurso anti-imigrantes (ou, pelo menos, contra a imigração “descontrolada”). Nos últimos quatro anos, a questão dominou o debate e resultou na reforma da política de imigração e asilo na UE, muito condicionada por países como a Polónia ou a Itália. António Costa tem sido defensor de um equilíbrio entre a necessidade de imigrantes para manter a economia europeia a funcionar e contrariar o declínio demográfico, ao mesmo tempo que se reforçam os mecanismos de migração legal e as garantias aos cidadãos europeus de controlo efetivo das fronteiras. Para o novo presidente do Conselho Europeu, os valores e princípios que referiu como centrais na sua intervenção “têm de ser defendidos” sem esquecer a “principal lição do passado sombrio da Europa, marcado pela ditadura e pela guerra”.

A paz não pode ser a paz dos cemitérios. A paz não pode ser capitulação. A paz não pode recompensar o agressor. A paz na Ucrânia tem de ser justa; tem de ser duradoura e tem de assentar no direito internacional”

Os líderes europeus olham com total desconfiança para a promessa do presidente eleito do Estados Unidos de acabar com a guerra na Ucrânia em 24 horas e têm afirmado, em diversas ocasiões, que é importante que se consiga uma situação de estabilidade duradora nesses territórios. A intervenção de Costa foi mais um desses momentos, com o novo presidente do CE a avisar que essa paz não só não pode “recompensar” Vladimir Putin, como tem de ser “duradora” e “assentar no direito internacional”. Uma tentativa de fixar as balizas europeias nessa matéria, já depois de ter dito, em entrevista ao Financial Times, que está “curioso” quanto ao que Donald Trump quer fazer na Ucrânia — também a Europa queria terminar a guerra em 24 horas, chegou a ironizar. Esta quinta-feira, ao Público, acrescentou que “não acredita que o Presidente Trump queira fazer na Ucrânia o que outros fizeram na retirada do Afeganistão”, referindo-se à retirada militar norte-americana do Afeganistão em 2021.

Temos de escrever um novo capítulo da UE enquanto projeto de paz. Tornando-nos mais fortes, mais eficientes, mais resilientes e, sim, mais autónomos em matéria de segurança e defesa. Assumindo um ónus maior no que toca à nossa preparação militar. Reforçando simultaneamente os pilares da nossa parceria transatlântica.

Sentiu-se na intervenção o peso da sombra da eleição recente de Trump e as ameaças que o norte-americano tem feito aos parceiros da NATO sobre a necessidade de reforçarem a sua contribuição numa. Costa defende uma posição defensiva europeia que passe por preparar-se para não depender dos EUA em matéria de Segurança e Defesa, mesmo sabendo que não pode cortar essa ligação e que o reforço do “parceria” transatlântica é determinante para a Europa.

O alargamento reforçará indubitavelmente a União Europeia. Mas a nossa paz, a nossa segurança e a nossa resiliência não dizem apenas respeito à Europa. Vivemos num mundo multipolar, com sete continentes diferentes e cento e noventa e dois países. Temos de os implicar, tecendo em conjunto uma rede mundial. Ao fazê-lo, devemos pôr de lado conceitos como o Sul Global ou o Norte Global. A ação externa da UE tem de reconhecer que tanto o Sul como o Norte são, na realidade, plurais.

Logo depois de falar na Ucrânia, António Costa falou na questão do “alargamento”, assumindo-a como vantagem — mesmo que em tempos, ainda como primeiro-ministro e muito concretamente em relação à Ucrânia, tenha colocado muita água fria. Agora, o novo presidente do Conselho Europeu fala do desafio do alargamento como parte da tal “unidade na diversidade” e incitou a Europa a agir como um todo plural em vez de cair no binómio Norte-Sul tantas vezes desavindo. Nesse quadro, Costa defendeu também que a UE se dedique a “causas mundiais”, enumerando como prioritárias a “oportunidade dos oceanos, a reforma da “arquitetura financeira mundial, a fim de a tornar mais equitativa, justa e reativa às crises” e o desenvolvimento sustentável a nível mundial”.

Para concluir, a cola que tem de nos unir – na defesa dos nossos valores, na construção da paz e na consecução da prosperidade – é a confiança. Temos de renovar essa ligação com os cidadãos. Trabalhando em estreita colaboração com os parceiros sociais, as nossas regiões, as nossas cidades e os representantes da sociedade civil.

A aproximação dos cidadãos europeus às instituições que têm sede em Bruxelas é outros dos objetivos que Costa traz para o seu mandatos de dois anos e meio à frente do Conselho Europeu. “Temos de demonstrar que respondemos eficazmente às preocupações das pessoas”, disse, exemplificando: “Da crise na habitação a uma melhor gestão da migração. Do envelhecimento às alterações climáticas. Da luta contra a criminalidade à criação de melhores empregos”. Garante que saiu “confiante” do périplo que fez antes de assumir as funções (e tocar o sino que recebeu de Charles Michel, objeto simbólico que marca o início das reuniões) e que ouviu dirigentes europeus a defenderem “uma ação coletiva inspirada na criatividade e norteada pelo pragmatismo”. Um misto entre o conceito de “otimista irritante”, celebrizado por Marcelo, e o negociador que sempre foi. Menos ideologia, mais realpolitik, agora numa mesa onde vão estar 27 Estados.





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