Não sei se repararam, mas já começou. Gouveia e Melo ainda não deixou o cargo de chefe do Estado-Maior da Armada, ainda não deixou de ser um militar no ativo, ainda não anunciou uma candidatura presidencial, ainda não começou a fazer campanha, ainda não teve um único voto, ainda não passou à segunda volta, ainda não venceu as eleições, ainda não tomou posse como Presidente da República e ainda não foi ungido com os poderes divinos que emanam do Palácio de Belém — ainda não aconteceu nada disso e o almirante já começou a provocar estragos em vários partidos.
No CDS, já há divisão. Diogo Feio, ex-vice-presidente do partido, sentiu-se obrigado a dizer, de forma definitiva e pública, sobre um eventual patrocínio do CDS à candidatura de Gouveia e Melo: “Não acredito, não apoio e acho que seria um absurdo”. Pouco depois, a antiga deputada Cecília Meireles contrapôs na televisão, de forma previdentemente cautelosa: “Não concordo com Diogo Feio”.
No Chega, já há indecisão. André Ventura não sabe se avança, se manda alguém avançar, ou se aproveita o avanço de Gouveia e Melo. Receando ser deixado de mão estendida pelo almirante caso decida apoiá-lo, o líder do Chega afirmou há dias: “Duvido que um candidato não queira o apoio de uma força que tem um milhão e 200 mil votos e que é fundamental para vencer umas eleições presidenciais. Depois não se venham queixar que não passaram à segunda volta”.
No PSD, já há indefinição. Há dias, um dirigente social-democrata influente no distrito de Lisboa reconheceu ao Observador, com pesado realismo, que “há muita gente do PSD que gosta do registo determinado e do perfil do almirante Henrique Gouveia e Melo” por ser “alguém que passa muito carisma”. Em contrapartida, admitiu, lacrimejante, que no partido “não se sente isso por Luís Marques Mendes”. Outro dirigente do partido assumiu, com sentido de inevitabilidade: “A única pessoa que poderia demover uma parte do PSD de votar no almirante era Pedro Passos Coelho”. Daqui se retira que, como Passos pretende continuar na ilha de Elba, então “uma parte do PSD” irá mesmo entregar-se alegremente nas mãos firmes de Gouveia e Melo.
É uma lei da política. Independentemente de estarmos perante um regime presidencialista, semi-presidencialista ou apenas parlamentar, um Presidente da República não sobrevive sem ter um partido, uma coligação ou um movimento que sirva de suporte para a sua ação política — mesmo que diga o contrário, como parece ser o plano de Gouveia e Melo. Em 1944, o general De Gaulle assumiu a Presidência francesa de forma solitária e teve de lidar com os partidos dos outros. Arrependeu-se rapidamente e, em 1947, já com a lição aprendida, lançou o União do Povo Francês. Em 1958, quando voltou à Presidência, armou-se com o União para a Nova República. Nos dois momentos, baralhou, confundiu e desestabilizou o sistema de partidos. Décadas depois, Emmanuel Macron fez o mesmo. Em 2016, depois de ser ministro da Economia pelo Partido Socialista, formou o Em Marcha e provocou dissidências em partidos da esquerda, do centro e da direita.
Em Portugal, toda a gente sabe o que aconteceu quando tivemos um Presidente sem partido. Primeiro, Ramalho Eanes ajudou a provocar uma enorme dissidência no PSD que acabou na formação de um novo partido, a ASDI; depois, levou Mário Soares a autosuspender-se da liderança do PS por discordar do apoio dos socialistas à sua reeleição como Presidente; e, no final, criou o PRD, que foi buscar militantes, dirigentes e votos a todos os outros partidos.
Em situações como esta, muitas vezes os partidos deixam-se convencer pela fantasia de que vão conseguir controlar ou contornar um Presidente que seja independente. É comum escolherem uma de três opções estratégicas. A primeira, que pode seduzir o CDS, é a “estratégia barriga de aluguer”. Os centristas podem oferecer uma história e uma estrutura — isso pode ser útil a Gouveia e Melo, que não tem uma coisa nem a outra. Em contrapartida, têm um problema, a falta de relevância política — e, para resolver isso, Gouveia e Melo pode ser-lhes útil a eles. A segunda opção, que pode seduzir o Chega, é a “estratégia cavalo de Tróia”. O partido pode oferecer muitos votos — isso será sem dúvida útil a Gouveia e Melo, que para vencer precisa de metade dos eleitores mais um. Em contrapartida, o Chega tem um problema, a falta de poder real — e, para isso, Gouveia e Melo pode ser-lhes útil a eles caso entre no Palácio de Belém. A terceira opção, que se está a impor no PSD, é a “estratégia cabeça na areia”. O PSD vê o seu eleitorado a desfazer-se, mas decide fazer de conta que não está a acontecer nada de especialmente grave, esperando que, de forma mágica, tudo se resolva algures no futuro.
Alguns espíritos poderão estar a fazer a seguinte pergunta a si mesmos: é Gouveia e Melo que se vai servir dos partidos ou são os partidos que se vão servir de Gouveia e Melo? É uma dúvida que não tem sentido: nestas coisas, ganha sempre quem tem mais poder. E, se for eleito Presidente da República, Gouveia e Melo vai ter muito poder. Por isso, os partidos devem preparar-se para o que aí vem. Para eles, não vai ser bonito.