Até há poucos anos o debate político em Portugal reduzia-se a comunistas, socialistas, sociais-democratas e democratas-cristãos. Neste debate não havia lugar para conservadores nem para liberais. A realidade era estranha, não só porque distinta do que sucede na maioria das democracias ocidentais, mas também porque, sem liberais nem conservadores, a democracia portuguesa privava-se dos dois movimentos e pensamentos políticos responsáveis pelo início, formação e desenvolvimento da democracia liberal.
Devido a esta ausência de anos no debate há quem considere que liberalismo e conservadorismo se opõem radicalmente, apesar de a teoria e a prática política nos mostrarem que não. O liberalismo, enquanto ideia de governo, impôs-se na Europa depois das guerras napoleónicas quando foi necessária uma nova fonte para legitimar o governo. A partir desse momento, este não mais se fundamentaria no direito divino dos reis, mas no povo. Mas como o povo é um conceito abstracto, pois o que há são indivíduos, famílias, comunidades, foi necessário estabelecer algo que garantisse a ordem. Sem esta não haveria segurança e sem o mínimo de segurança não há liberdade. Esse algo foram as constituições. Nestas, se enumeraram a fonte do poder, a sua separação e partilha, modo de exercício e a forma pacífica deste transitar de uns para os outros. Com esse intuito foram reconhecidos direitos, liberdades e garantias.
Contrariamente aos conservadores, os liberais acreditavam no progresso e no papel dos indivíduos, da pessoa humana concreta, sem a qual esse progresso não seria possível. A liberdade individual era indispensável, não só por razões morais, mas porque sem liberdade individual não haveria progresso.
Já os conservadores não acreditavam na melhoria de vida das pessoas como resultado inevitável da liberdade individual. Pelo contrário, consideravam-no dependente da ordem comunitária até então existente. Enquanto os liberais olhavam para o futuro com esperança, os conservadores tiravam conforto do passado para encararem o futuro. Um conservador não negava que a vida pudesse melhorar (essa melhoria era evidente no início do século XIX, embora não inevitável). Simplesmente duvidavam que um corte radical com o passado trouxesse melhores dias, quando esse mesmo passado tinha servido de guia para a melhoria até então conseguida.
Apesar das diferenças havia uma grande semelhança entre as duas correntes: é que nenhuma pretendia criar um mundo novo. Tanto liberais como conservadores tacteavam às cegas com o que tinham em mãos. A prudência era a regra de ouro. E tanto assim foi que o liberalismo se adaptou aos desafios que foram aparecendo: a urbanização e a massificação desta decorrente, o nacionalismo como compensação do desenraizamento das populações, a melhoria do nível de vida e o surgimento dos tempos livres, a divulgação da imprensa escrita, o aumento do interesse pela leitura de novos autores, o consumo das artes, tudo contribuiu para uma nova percepção do valor do indivíduo, de cada pessoa em concreto. Ao mesmo tempo que as pessoas se afastaram das suas comunidades de origem e se depararam sozinhas na cidade perderam o elo que as ligava ao Estado. Para compensar essa perda, o conceito de nação ganhou relevância. Perante estas alterações, o liberalismo adaptou-se, corrigiu um e outro aspecto, ganhou uma ou outra valência. Não definiu ‘a priori’, mas esperou para se acomodar ‘a posteriori’.
Essa mudança ainda não terminou, como vimos na discussão do que se entende por família ou no debate sobre o direito de aquisição da nacionalidade. Aliás, a família esteve na boca do mundo após a apresentação, por Pedro Passos Coelho, do livro ‘Identidade e Família’. De imediato, os campos em discussão foram conotados como sendo, por um lado, os defensores de uma ideia retrógrada da família e, por outro, os que a desejam destruir. A realidade, essa, é completamente distinta, pois a grande maioria revê-se no seu próprio conceito de família, ou melhor, no conceito de família que conseguiu alcançar ou que a vida lhe permitiu. Não há verdades absolutas como não há vidas absolutamente planeadas. Nesse sentido, chegou-se a um consenso generalizado de que há vários tipos de família. Da mesma forma é cada vez maior o número de homens que assumem, em casa, um papel que há uns anos seria impensável, por muito que haja quem considere isso impossível.
Entretanto, se os liberais surgiram no debate político português, os conservadores (no sentido referido neste texto) encontram-se num momento mais embrionário. Fora as intervenções e os livros de Miguel Morgado e de João Pereira Coutinho, o pensamento conservador português ainda se confunde com posições retrógradas, um atavismo assustador que se espera os conservadores portugueses consigam ultrapassar. Se assim for, tornar-se-á evidente que os fins e os objectivos dos liberais e dos conservadores podem ser diferentes, mas a forma de caminhar é idêntica e contrária à das correntes referidas no início deste texto, marcadas que estão pelo vício marxista da necessidade histórica que, à excepção do comunismo, procuram evitar. É precisamente por isso que se torna indispensável recuperar as tradições liberal e conservadora de percepção da mudança, da análise constante das novas correntes e da adaptação às novas realidades. Se o fizermos, os liberais não se reduzirão ao wokismo nem os conservadores ao atavismo ultramontano. Nem liberais nem conservadores assumirão posições dogmáticas sobre matérias que evoluem com o tempo, mas procurarão conciliá-las para que o progresso que se deseja tenha em conta a experiência do passado.