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“Não é fácil regressar a casa para escrever uma história” – Observador Feijoada

ByEdgar Guerreiro

Mai 9, 2024


Como é que nasceu a história destes empreendedores improváveis de Sinais de Fumo?
Surge do facto de ter conhecido pessoas enterradas numa forma de vida que não fazia grande uso das suas capacidades notáveis que tinham. A pessoa que inspirou a personagem do Charlie Brown é alguém que conheço desde a escola primária e que, por causa das circunstâncias infelizes do seu nascimento e depois da sua biografia, tem ali um grande esforço de voar sozinho como o Charles Dickens. Se não o conhecesse da vida real, dizia que era um grande cliché. Resolvi dar-lhe um twist através da audição louca de música dos anos 80, uma tentativa do Charlie de mitigar a distância dos pais. Saí rapidamente do bairro, desde os 16 anos que fazia planos para almejar algo mais épico do que trabalhar na Autoeuropa ou ter um cargo burocrático na junta de freguesia. Quando comecei a trabalhar em Lisboa como publicitário, tinha 20 anos — desisti da faculdade no segundo ano para ser copywriter —, percebi que esse sonho não me dava liberdade criativa suficiente. Então arranjei outro sonho, um sonho literário, e percebi: “Os teus amigos não vão sair do bairro, portanto o teu primeiro trabalho [livro] tem de ser uma homenagem a todas as capacidades que ficaram perdidas”. Mas não podia ser só mostrar os lados bons, tinha também de mostrar as ameaças, as tristezas, a toxicidade. E, durante o processo, acabou por ser um peso enorme que carreguei. “Será que tenho talento para fazer justiça das vidas destas pessoas?” Hoje sinto que não consegui tanto quanto gostaria, mas foi um bom esforço.

Quanto tempo é que demorou a escrever este livro?
No total, foram uns quatro anos e meio. Primeiro, demorei dois anos a escrevê-lo. Até fiz uma festa, convidei amigos de Setúbal e li algumas cenas. Depois desse fim de semana, cheguei muito cedo ao escritório na segunda-feira de manhã e, antes de começar a trabalhar, pus-me a ler o livro sozinho. Aí foi chorar baba e ranho porque percebi que o livro era mau. Não escrevia tão bem quanto queria, os meus temas não estavam bem estabelecidos e as personagens diziam coisas que não pareciam de pessoas reais. Mandei tudo fora e comecei do início. Devia estar a escrever mais ou menos há um ano quando, acidentalmente, tropecei no truque que penso ser o segredo de Sinais de Fumo, que é o pronome de ligação. Enganei-me e escrevi “o nosso” bairro e tive um momento de clareza: “se queres mostrar o teu bairro às pessoas, tens de usar uma linguagem que as convide a entrar”. Os pronomes neste livro são mais ou menos como quando um chunga está a falar connosco, mete o braço por cima do ombro e não sabemos se ele é amigo ou se vai cravar tabaco.

Tem uma Alex, mulher, na história que é muito diferente do restante grupo: foi para a faculdade, tem um curso, claramente tem uma visão diferente. Ela tem alguma coisa do Alex, o escritor que a criou?
Nunca senti que fosse másculo o suficiente para o bairro do Viso. Se não namorasse, os meus amigos não me respeitavam. Ouvi comentários como: “Se não tivesses uma namorada tão gira, achávamos mesmo que eras gay” ou “o João Paulo é mais homem do que tu porque foi jogar à bola enquanto tu ficaste em casa a ler Harry Potter, por isso és um paneleiro”. E isso não vinha só dos amigos, mas também da família ou de namoradas que diziam que eu era um rapaz “um bocado amaricado”. O que tentei com esta personagem foi responder a algumas perguntas que tinha sobre o bairro. “Se tivesse sido outra pessoa, como é que seria? Haveria empatia? Será que as diferenças iriam criar discrepâncias maiores? Ou haveria um esforço de aproximação? Como seria lidarem com o facto de uma mulher gostar de raparigas, por exemplo?” Tentei explorar tudo isso.

A capa de “Sinais de Fumo”, de Alex Couto, publicado pela Suma de Letras

Apesar de ter um glossário no final, o texto está escrito com uma linguagem muito específica, com termos pouco comuns, não apenas nos diálogos, mas também nas descrições do narrador. Teve essa discussão com a sua editora? Não temeu que a linguagem fosse demasiado de nicho?
A linguagem é o que faz o livro. O seu território físico torna-se um território de linguagem também. Escrevo de forma mais rápida e colorida quando toco no território do “como é que é rapaz, aqui na boca da zona tá toda a gente memo ‘se bem” porque durante anos falei assim. E aqui fazia sentido. A minha editora nunca revelou preocupação em relação à especificidade da linguagem, desde que as pessoas compreendessem. Por isso, chegamos à ideia de ter um glossário. Crescer num sítio com tantas adversidades à partida, mas que depois tinha uma linguagem quase codificada, em que podíamos celebrar a nossa pertença, era uma espécie de compensação. Depois, aconteceu outra coisa: tenho recebido mensagens de pessoas a dizer que o livro faz lembrar Matosinhos, as Caxinas, Portimão. Fico muito feliz por isso.

Quer dizer que há muitos bairros do Viso espalhados pelo país?
É exatamente isso. Fiz um grande esforço para representar aquele colorido de personagens em específico e, acidentalmente, acabei a representar outras comunidades que, mesmo com características internas e linguísticas diferentes, se reveem nisto.

A música é muito importante na história. Há referências constantes a temas. Porquê?
Acho que os chungas não são tão incultos ou burros como as pessoas pensam. Lembro-me de chegar ao bairro e alguém ter feito caldeirada ou alguma comida africana, comprarmos uma porção individual, ficarmos ali entre amigos e alguém vir ter comigo e dizer: “Ei, Alex, tu que curtes bué de música, vê lá se já ouviste este som”? Lembro-me de me terem mostrado Frank Ocean ou Lana del Rey, que até aparece a abrir o livro. Lembro-me de ouvir e de parecer kizomba. Quis dar destaque a isso porque, à partida, se eu disser que há ali um gajo que ouve discos do início ao fim porque quer ter uma cultura musical, ninguém vai acreditar. Pessoas com argolas com chipitos pendurados, que usam roupa Lacoste ou têm um Honda del Sol não parecem pessoas com capacidade de absorção de cultura. Confesso que, na primeira versão do livro, queria muito que estas personagens fossem pessoas que lessem, mas depois aquilo pareceu-me inverosímil. Não são pessoas que leem e a linguagem delas revela isso. Mas ouvem música, portanto quis captar a jornada de progresso intelectual e de vivências através da música. Há coisas muito próximas do território da minha adolescência. Ouvi milhões de vezes no bairro o Bandido [Neuza], o Faz Amor Comigo [da Roberta Miranda], a kizomba também era mainstream. Agora os leitores também comentam a lista.

Há uma playlist de Sinais de Fumo?
Ela está feita e gostava de partilhá-la nas redes sociais. Só tenho pena que algumas não existam no Spotify, porque são êxitos de zona ou vêm de mixtapes maradas. Mas gosto que traga o sentimento de crescer nos anos 90 e 2000. Lembro-me de descarregar músicas do LimeWire ou do eMule. Tinha um part-time em casa do meu vizinho Hélder Gordo em que ripávamos CD no computador, imprimíamos as capas e vendíamos às pessoas pela janela. A música estava sempre muito presente. Quando penso no bairro, lembro-me primeiro de alguns cheiros e das paisagens. Depois, se me concentrar, oiço a música. Foi isso que tentei colocar nesta obra.



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